Querida Alice,
Chegou, finalmente, o dia do teu sexto aniversário. Finalmente,
porque a pressa de ser grande se transforma em impaciência quando os
aninhos ainda podem ser contados pelos dedos.
Entre Agosto e Setembro, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola é só um
saltinho de pardal. Dentro de poucos dias, a criança que és há-de ser
"aluno". Presumo que não vás perceber a diferença, mas não ouso afirmar.
Quero apenas acreditar que, em 2007, já não sofras os dramas que crianças de
outras gerações suportaram. Nasceste no primeiro ano deste século, mas houve
alguém que, já no início do século XX, escrevia que aquele seria "o século da
criança". Enganou-se.
Como todas as crianças, sentirás apreensão e curiosidade. Irás fazer novos amigos
e conhecer adultos que, supostamente, te ajudarão a crescer e a compreender
o mundo. É sobre esse mundo novo e misterioso, que se abre para os teus olhos
de menina curiosa, que eu te venho falar. Venho contar-te as histórias que não
te pude contar quando eras mais pequenina. Eu explico...
Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, à semelhança de outros professores
em início de carreira, os teus pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam
a incerteza da "colocação". Eu explico...
"Colocação" era o final feliz de uma angustiada espera. A "colocação"
dava aos teus pais a certeza de que, pelo menos durante um ano, poderiam fazer
o que gostavam de fazer: ensinar e aprender numa escola como aquela onde vais
viver alguns anos da tua vida. E era também nessa diária aventura de ensinar
e aprender que os teus pais amealhavam o seu sustento e asseguravam o teu futuro.
Os teus pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viesses ao mundo num tempo
incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas
de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. E aceitaram a sina
de, ano após ano, levarem a casa às costas para onde o acaso do "concurso"
os atirava. Eu explico...
"Concurso" era um estranho jogo, um jogo de acasos, que os professores
eram obrigados a jogar naquele tempo. O "concurso" era impiedoso e, no
final de cada ano lectivo, impunha a violência da separação àqueles que se começavam
a conhecer e a compreender. O "concurso" era cego, pouco se importava
com os afectos e nada entendia de criar laços.
Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados
daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa, ano após ano.
Dentro da casa, levavam o teu berço para longe das paragens habitadas pelos
teus avós. Era assim naquele tempo e, só por isso, não pude estar junto de ti
para te contar o mundo pelo caminho dos bosques e palácios de sonho habitados
por duendes e príncipes encantados. E tu não pudeste ensinar-me a gramática
de tempos que serão teus e que, certamente, já não poderei ver.
Mas sei que os teus pais te afagaram com a meiguice das palavras que crescem
no coração dos pais. Tenho a certeza de que se debruçavam sobre o teu rosto
quando ainda só falavas com o olhar, para te dizer do imenso afecto que os unia
e de que eras o fruto maravilhoso. Estou certo de que embalaram o teu sono com
histórias que te ajudaram a afugentar as sombras e os medos da infância.
Se não te disse as palavras doces no tempo certo, agora me redimo. Falar-te-ei
em nome de todos aqueles que, em perturbados tempos, se deram a utópicas tentativas
de dar sentido a experiências que a maioria das crianças que foram as da geração
dos teus pais e avós não puderam conhecer. Falar-te-ei de professores que acreditavam
ser possível pôr humanidade no acto de aprender e ensinar. Quero que saibas
que havia pessoas assim.
Aqui chegado, pressinto que te interrogues: afinal de que estás a falar, avô
Zé? Estou a falar de histórias que ficaram por contar. Através das imperfeitas
palavras, farás a viagem ao tempo em que em que se desenhavam os destinos das
crianças futuras, projectos (como então se dizia) de escolas de um devir luminoso.
Disso te falarei amanhã.
Com amor,
Algures, em 30 de Agosto de 2007,
O teu avô José.
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