Nos tempos em que vivemos de aceleradas transformações sociais, tecnológicas e culturais, parece que as ideologias conservadoras estão a dar mostras de uma maior capacidade de adaptação discursiva e política do que todo o espectro de posições progressistas. Nesta adaptação à modernidade, o conservadorismo atraiçoa os seus princípios morais e ideológicos sem pestanejar, movendo-se entre contradições e paradoxos como peixe na água. Em contraposição, a esquerda política parece encontrar extraordinárias dificuldades em rearticular discursos e estratégias políticas: quando traduz os seus valores de mudança social em favor da igualdade em medidas radicais, a esquerda é acusada de posições utópicas ou de "progressismo tresloucado", nada de acordo com os tempos que vivemos. Pelo contrário, quando os movimentos de esquerda se convertem em "realistas", nunca faltam as acusações de traição aos princípios e de se "vender ao inimigo".
É necessário, portanto, reflectir porque é que umas posições ideológicas mudam de cor como um camaleão sem sofrer qualquer vertigem moral, enquanto que outras dão mostras de incapacidade para legitimar as suas necessárias e inevitáveis readaptações. Qual é a batalha que o neo-conservadorismo está, desta forma, a ganhar? Muitas, sem dúvida, mas uma das mais relevantes reside na apropriação do conceito de mudança. Algo tão antagonista etimologicamente da ideia de conservação é apropriado pelos sectores sociais cujo interesse reside precisamente na preservação de privilégios adquiridos. Como recordava Bourdieu en La distinción, as estratégias para evitar a desclassificação das classes burguesas, e para manter o status, passam pelo paradoxo da mudança, da mudança necessária para preservar as suas posições relativas. A direita política reage, em sintonia com as novas classes médias, modificando a base discursiva que assegura a sua reprodução nas posições de poder.
Um bom exemplo disso é-nos proporcionado pelo conceito de modernização e pela sua nova centralidade no denominado "interesse geral". Se pelo desenvolvimento do keynesianismo o Estado de Bem-Estar se converteu no objectivo dos estados democráticos, no leit motiv da acção governamental no sentido de defender o interesse geral da cidadania, a globalização económica e o neoliberalismo facilitaram o uso do termo modernização como símbolo da adaptação aos novos tempos. Deste modo, preservar os direitos adquiridos pelos cidadãos no âmbito do Estado de Bem-Estar passa a ser um objectivo político secundário em relação à necessidade iniludível de modernizar a sociedade. Dito de outra forma, a preservação do bem-estar social só pode ser assegurado se previamente a sociedade der mostras da sua capacidade de adaptação económica e política às novas regras do jogo impostas por uma ordem económica inexorável que exclui os não competitivos, que exclui os estados empenhados em manter estruturas burocráticas rígidas que, em última instância, conduzem à falência nacional. Propostas que há trinta anos teriam sido consideradas um autêntico ataque aos direitos e liberdades dos cidadãos, entram hoje na agenda política como "medidas de modernização". Existe actualmente um espaço discursivo para a capitalização das pensões, para a privatização dos serviços sociais básicos, para desenvolver a denominada "sociedade de bem-estar", para desmembrar o contrato laboral, para definir noções de cidadania articuladas mais em torno de deveres do que de direitos. Paradoxalmente, aqueles sectores sociais e políticos que faziam sua a bandeira da conservação das estruturas de poder, são hoje actores protagonistas da mudança, líderes políticos e mediáticos das reformas do estado. Entretanto, a esquerda política, com a sua bandeira do progressismo e da inovação, vê-se cada vez mais reduzida a viver imersa na contradição de conservar, de preservar direitos e liberdades que foram, em dado momento, o resultado da luta social. Sem capacidade para articular discursos de conservação, a esquerda política move-se muito pior no âmbito da manutenção de posições do que uma direita extraordinariamente versátil que sabe aparecer hoje como a alternativa de "mudança".
Se este contexto político peculiar nos surge como paradoxal, mais surpreendente
e dolorosa nos aparece esta contradição nos países do sul de Europa. A nossa
história recente de falta de liberdades políticas, de infra-desenvolvimento
dos direitos de cidadania, confronta-nos com a perspectiva de transformar o
inacabado, de considerar "medidas de modernização" para mudar o que nunca tivemos.
A proximidade das nossas ditaduras, além disso, torna grotesca a visão de caras
e de nomes da direita política que se situam na primeira linha do reformismo
do estado, as mesmas caras e os mesmos nomes que, em dado momento, se encarregaram
de impedir a verdadeira modernização da sociedade.
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