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Não podemos ignorar

A Comissão de Peritos para o Acompanhamento de Execução do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, a que tive o gosto e honra de presidir, apresentou recentemente o relatório resultante da imperatividade de apresentar ao Conselho de Ministros relatórios anuais de execução das medidas que integram o Plano.
Parece-me interessante realçar "à lupa" certos pontos do referido relatório:
  1. Muitos progressos se registaram, nomeadamente no âmbito legal, no que se refere à abordagem deste autêntico flagelo social. O aumento do numero de casas - abrigo para mulheres e crianças vitimas de violência foi considerável. O esforço das polícias, nomeadamente através do Projecto INOVAR, é de assinalar.

  2. O papel do Estado é fundamental: nem a política de não ingerência nos assuntos privados nem os valores e costumes tradicionais podem ser invocados para impedir a luta contra a violência.

  3. A abordagem integral e integrada da questão da violência é fundamental. Entende-se por abordagem integral a articulação da temática "condição feminina" com as questões da violência, aprofundando duas componentes que parecem essenciais:
    • a organização do Estado e das sociedades baseada na desigualdade entre mulheres e homens
    • a identidade de género.

    Entende-se por abordagem integrada a articulação entre os modos de intervenção dos mecanismos governamentais e não governamentais, estabelecendo fronteiras e definindo espaços de modo a utilizar racionalmente os recursos humanos e financeiros sempre escassos..

  4. A existência de serviços de informação diversificados de apoio às mulheres vitimas de violência parece uma boa prática a incentivar. A existência da Linha Verde de Apoio às Mulheres Vitimas de Violência 800 202 148 ( da responsabilidade da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM e da APAV) e o site da CIDM ( www.cidm.pt) são disso exemplo.

  5. O papel das organizações não governamentais de apoio e protecção às vítimas é fundamental

  6. A aplicação da medida legal de afastamento do ofensor deveria ser mais largamente aplicada pelos tribunais.

  7. As acções de sensibilização e informação, visando a prevenção e apoio, e tendo em conta diversos públicos - alvo ( incluindo agressores) deverão prosseguir.

No que se refere ao futuro, julga-se de realçar as seguintes recomendações:
  • Um futuro Plano deveria englobar os vários tipos de violência (assédio, prostituição e tráfico, pornografia, violência sexual e doméstica) sendo portanto um plano de violência de género com sub planos independentes com relatórios e monitoragem independentes e financiamentos próprios, a inserir ou não no II Plano para a Igualdade de Oportunidades, em fase de finalização.

  • É urgente a implementação de monitoragem e avaliação permanente do Plano e necessidade de estudos mais aprofundados que permitam planos de acção quantificados com definição de metas a atingir, por ministério, em articulação com o Plano para a Igualdade de Oportunidades.

  • A investigação sobre o tema deverá prosseguir, sugerindo-se que o INE considere os dados oficiais da violência doméstica como indicador de desenvolvimento social.

  • Importa rever a legislação vigente, nomeadamente no que se refere à situação das mulheres imigrantes vitimas de violência, à actuação das polícias relativamente à entrada no domicilio sem mandato judicial em situações de perigo actual/iminente, à legislação relativa ao uso e porte de arma, à rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência e à Lei de Protecção de Testemunhas em processo penal

Sem o empenhamento, patente nos Planos de Governo e nas Grandes Opções de Política para 2002, a acção da CIDM (e aqui presto homenagem aos técnicos e funcionários que no seu quotidiano apoiam e sofrem com as mulheres vitimas de violência, dinamizam acções de formação e sensibilização e contribuem de vários modos para que as nossas edições sejam uma realidade) não seria possível, nem tão intensa, nesta área.
Colocam-se aqui os problemas de difusão referidos num Seminário sobre Democracia Paritária do Conselho da Europa. É a questão de sacralizar os direitos, na expressão do Prof. Boaventura Sousa Santos. É aqui se insere a noção de "alfabetização jurídica" definida como processo para aquisição de consciência critica acerca dos direitos e da lei, capacidade para reivindicar direitos e capacidade para motivação para a mudança. É esta linha que deverá inspirar, julgo, a edição de publicações relativas a violência na família e na rua, actualizadas a partir de legislação que vai sendo produzida.
Haverá pois que, em termos de apoio, descodificar a linguagem. A alfabetização jurídica possibilitará que as mulheres conheçam a lei e fiquem a perceber o que é que a lei significa no contexto das suas vidas. As mulheres poderão assim reflectir sobre as suas vidas, perceber as violações da lei que ocorreram nas suas vidas, ligar essas violações a causas estruturais tais como classe, género e perceber como essas estruturas se apoiam na lei. Disso surgirá uma maior consciência critica acerca da posição subordinada das mulheres na sociedade e do papel que a lei desempenha no reforço dessa subordinação e levará porventura ao desenvolvimento de estratégias de mudança social.
A reflexão sobre a teoria da prova e a vitimologia à luz de uma perspectiva feminista do Direito - ou, se quisermos, à luz da situação das mulheres na sociedade - constitui um desafio para as/os juristas.
Vem-se produzindo a nível internacional vasta reflexão, relativamente à chamada Justiça restaurativa, entendo-se por tal um processo em que todas as partes relacionadas com um crime determinado se encontram para resolver colectivamente como lidar com as consequências do crime e as suas implicações futuras(1).
As mulheres continuam, aqui ao lado, a ser vitimas de várias violências. Os direitos humanos (das mulheres) continuam a ser violados em Portugal. Como diz Sofia de Mello Breyner: " Não podemos ignorar".
1 Relatório do 9º Colóquio organizado pela Fundação Courmayeur Mont Blanc sob os auspícios das Nações Unidas

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Ana Maria Braga da Cruz
Presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher - CIDM
Ana Maria Braga da Cruz
Presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher - CIDM

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