Durante anos e anos, OV, hoje um artista das artes plásticas,
interrogava-se sobre o estranho mistério que envolvia a letra éfe. Todos os
dias ouvia, na emissora de rádio que sintonizava, essa estranha notícia, vezes
sem conta repetida, que laconicamente anunciava "éfe é mistério". Mas que mistério
esconderia esse tal éfe, sexta letra do nosso alfabeto?
Muito mais misterioso do que aquele FM estéreo, é o facto de milhares e milhares
de jornalistas, em todo o mundo, darem, no mesmo dia e sem prévio acordo entre
eles, maior relevo à notícia de um taliban que se barbeia em Cabul do que a
um qualquer bombardeamento aéreo que possa ter atingido, por engano, uma aldeia
transformada em dano colateral.
Também os mortos de Lagos, na Nigéria, vão ter menos espaço informativo do que
os do World Trade Center, de Nova Iorque, embora haja indícios que o número
de vítimas mortais nigerianas possa ser ainda superior ao dos mortos caidos,
a 11 de Setrembro, nos ataques às Torres Gémeas.
No dia em que foi notícia a morte do sociólogo francês Pierre Bourdieu (primeira
página no Público) outros jornais, como por exemplo o JN, preferiram dar a notícia,
com destaque, de um insólito suicídio no Jardim Zoológico de Lisboa - o de um
sexagenário que se atirou para o fosso dos leões e foi abocanhado, fatalmente,
na cabeça, pela leoa velha.... Um outro leão, também velho, o mais famoso habitante
do Zoo de Cabul, acabou por morrer, de morte natural, com direito a notícia
em todo o mundo. Sobreviveu aos russos, aos talibãs e aos americanos, merece
notícia, talvez maior do que a do engasganço do presidente Bush ou do que a
do atropelamento mortal do, com sua licença, cão do Bush.
A rádio já não é a oficina da poesia, a "Miséria do Mundo", que Bourdieu (1930-2002)
publicou em 1993, não terá ultrapassado o sucesso editorial de "A Corrupção
da Sociedade Mediática" e tudo isto parece apenas querer dizer que estamos,
crescentemente, entregues aos bichos.
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