Nanni Moretti está no topo da sua carreira: em 2001 foi presidente
do júri do Festival de Veneza e o seu filme - que vai estrear este mês em Portugal
- "O quarto do filho" venceu a Palma de Ouro de Cannes. A sua estreia como realizador
nos anos 70 colocou-o como o sátiro da burguesia romana pós-68, o que dificilmente
lhe poderia dar um lugar no panorama do cinema mundial. Mesmo em Itália as audiências
dividiam-se entre os incondicionais e os críticos. A divisão não era puramente
política, pois as credenciais políticas de esquerda de Moretti nunca o impediram
de criticar os seus.
O filme que o lançou como o melhor realizador italiano da
sua geração foi "Palombella Rossa" (1989) no qual representava o papel principal
de um deputado comunista que sofria de amnésia depois de um acidente de viação.
Dois anos mais tarde o Partido Comunista Italiano (PCI) analisando a sua crise
interna decidiu mudar o seu nome para Partido Democrático de Esquerda (PDS).
Alguns recordaram-se da visão de Cassandrade Moretti, muitos outros continuaram
a desprezá-lo. Nessa altura ele já tinha feito o documentário "La Cosa" (1991),
no qual mostrava a dignidade com que as bases do PCI enfrentavam a crise.
Nos anos 80 a fama de Moretti atravessou os Alpes, sentindo-se
particularmente em França. Mas o reconhecimento internacional como realizador
a ter em conta conseguiu-o na década seguinte, devido a dois filmes "Caro Diário"
(1993) e "Aprile" (1998). Nos dois, Moretti aproximou-se de um tom de diário
baseado numa subtil mistura de documentário e ficção. "Querido Diário" começa
com um belíssimo passeio de lambreta pelas ruas de Roma que termina numa sentida
homenagem a Pasolini - ao som do piano de Keith Jarret - junto ao local onde
este foi assassinado, continua numa viagem ficcional por ilhas italianas do
Adriático em busca de paz e termina em tons sombrios com a descoberta de um
cancro de pele de Moretti. O tom autobiográfico em "Aprile", filme dedicado
a dois acontecimentos importantes da sua vida, um privado - o nascimento do
seu filho - e o outro público - a vitória da coligação centro-esquerda nas eleições
de 1996. Longe de ser apenas uma celebração cinematográfica da esquerda, "Aprile"
é, ao mesmo tempo, o tratamento humorístico do tema de Fellini do bloqueio criativo
de um realizador e um retrato da Itália contemporânea.
Com "La Stanza del Figlio" ("O quarto do filho") Moretti pôs
a fasquia um pouco mais alta. O filme é um estudo psicológico de uma família
da província italiana. Moretti faz o papel de pai, um psicanalista. O cenário
não podia ser mais monótono e Moretti trata a primeira meia hora em tons de
ironia. Então acontece o desastre, o filho morre, e o filme torna-se numa reflexão
sobre a morte e o desgosto.
A segunda parte do filme é o mais possível fora do seu habitual
registo. A inesperada volta do melodrama é controlada com excepcional maturidade,
que foi confirmada por muitos prémios internacionais. Moretti tem a reputação
de ser nas entrevistas, assim como na vida privada, um excêntrico controlado.
Realmente, ele não só escreve, realiza e interpreta os seus filmes mas também
tem uma produtora, uma distribuidora e ainda um cinema em Roma.
Numa entrevista publicada na "Sight and Sound" de Janeiro
de 2002, ao ser questionado sobre o facto de ser a primeira vez que num filme
seu não há referências à sociedade italiana no seu conjunto, Nanni Moretti respondeu:
"Não há referências a acontecimentos contemporâneos, mas na altura não foi uma
escolha intencional, apenas funcionou assim. Olhando para trás, agora vejo que
não há uma única cena em que quando se liga a televisão seja apresentado um
programa em particular. Para que isso acontecesse era necessário que houvesse
uma interferência - era preciso que se datasse o filme e dado um sentido de
actualidade, e isso não era necessário. Não queria que a história se passasse
em Roma - isso é uma coisa que posso racionalizar em retrospectiva - porque
uma tragédia como esta podia perder-se numa grande metrópole. Em Ancona encontrei
uma cidade onde podia ao mesmo tempo esconder e mostrar o acontecimento (...)
Muita gente diz: "Ah, tu abandonaste a política". Vamos tornar isto claro: 1º
Não abandonei a política coisa nenhuma. 2º Não sei sobre o que vai ser o meu
próximo filme, nem o seguinte. Tenho umas ideias nessa direcção mas a política
não tem necessariamente de ser uma presença em todos os meus filmes. 3º Embora
eu seja considerado, e bem, um realizador político, isso não é verdade literalmente.
As pessoas ficaram com a impressão errada porque eu falo de política nas minhas
entrevistas, mas a política nos meus filmes tem sido um subtexto excepto em
dois deles. Em "Palombella Rossa" a política é protagonista, embora não fosse
um filme realista. Era a história da perda de memória, da crise do Partido Comunista
Italiano através da metáfora de um jogo de polo aquático interminável. Depois,
em "Aprile", a política foi apresentada pela primeira vez. Aí encontra-se aspectos
da política italiana nunca apresentados no cinema italiano: a chegada surpreendente
de Berlusconi à política, directores da televisão nacional como Emilio Fede
- um apoiante declarado de Berlusconi que trabalha num canal deste o Rete Quattro
- o qual, ao contrário da maioria da gente de esquerda, não considero cómico
mas sim violento".
Como se vê "O quarto do filho" é um filme a não perder.
P.S. (Fora de contexto) - Num texto publicado em 1939 o romancista e cinéfilo
americano Henry Miller dizia: "A diferença fundamental entre os filmes franceses
e os filmes americanos como todos sabem, assenta na maneira de compreender
o que é humano. (...) Porque a grandeza americana reside sobre a glorificação
das catástrofes. Eles vangloriam-se de absorver o que há de melhor no mundo,
mas, na realidade, apropriam-se apenas do que se adapta ao seu próprio nível
de vida, que é baixo, e depois impõem-no ao mundo como se tivessem sido eles
a criá-lo". Repito, foi escrito em 1939 por um escritor americano. Henry Miller
de seu nome.
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