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Os "ajudadores"

Numa desafiante entrevista à American Anthropologist, no já algo distante ano de 1988, Maurice Bloch coloca a nu o trabalho levado a cabo pelas Organizações Não-Governamentais e por muitas outras agências ligadas à cooperação e à ajuda ao desenvolvimento nos países periféricos. Para este antropólogo da London School of Economics tudo não passa de uma nova forma de parasitismo dos pobres que serve para garantir empregos bens remunerados e privilégios aos envolvidos nesta (aparentemente desinteressada) actividade.

Conhecendo, por interesse académico e razões de ofício, o debate sobre o desenvolvimento no campo das ciências sociais, as palavras de Bloch sempre me perseguiram. Embora seja um crítico severo das políticas de desenvolvimento receitadas com grande enlevo pelas instituições do consenso de Washington, acreditei sempre que as coisas não seriam assim tão cinzentas.

Quis a carreira académica proporcionar-me a oportunidade de experimentar os argumentos de Bloch. Tudo começou em finais de 1998, com o meu ingresso na UTAD, onde vivi, nesse primeiro ano de casa, uma interessante actividade profissional, ensinando na licenciatura de Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento. Aí fui confrontado com o esquema teórico e, sobretudo, com a lógica, pretensamente técnica mas, na verdade, profundamente ideológica, da formação de técnicos guiada pelos paradigmas da globalização hegemónica. Ficava a faltar a o contacto prolongado com o terreno.

Chegado a Moçambique, a vivência quotidiana logo confirmou uma forte suspeita que trazia de Portugal: nem todas as ONG, longe disso, estão do lado da globalização contra-hegemónica, algo que justamente foi reconhecido por Boaventura de Sousa Santos numa entrevista recente ao mais influente jornal diário moçambicano. Na verdade, uma verdade amarga e excessiva para todos os que praticam a dissidência, a maioria das ONG deixou-se enredar nas teias do sistema, sendo hoje um esteio fundamental para a sua estabilidade. Umas porque comprometidas ideologicamente, outras por mero pragmatismo de sobrevivÊncia, ao elegerem como principais áreas de intervenção a saúde e a educação, negligenciando a esfera produtiva, em especial a industrial, as ONG colaboram activamente na reprodução das relações de dependência. Entre estas, a diplomacia e a cooperação estabeleceu-se um triângulo de cumplicidades na qual a população é, de modo repetido, um mero recurso para alimentar os seus interesses. Em concreto, a ajuda constitui um dispositivo para os que dizem ajudar se ajudarem, com expressão forte na estilização das suas vidas proporcionada pelos salários de três, quatro e até mais de 5.000 dólares, viaturas de tracção integral para uso total, habitações confortáveis, viagens para os países de origem, criados e criadas para todo o serviço e sabe-se lá o que mais. Tudo somado, sempre em dólares para se estar em coerência com os tempos que correm, o custo de um "ajudador" pode atingir os 30.000 dólares/mês, conforme contas feitas por Joseph Hanlon, um autor bem conhecido nestas paragens.

Como não poderia deixar de ser, a elite política é elemento activo e dedicado nesta estranha parceria, circulando entre os cargos políticos e as consultorias nas ONG e na miríade de organizações internacionais e nacionais que dão corpo à cooperação. E o absurdo ganha um inusitado sentido: as calamidades são o melhor que pode acontecer à elite política e a toda esta gente predadora ligada à cooperação. Como me confidenciava um antigo membro da burocracia estatal, hoje empresário, como se comenta quotidianamente nos círculos privilegiados de Maputo, mais com ironia do que com acrimónia, nada como umas inundações como aquelas que atingiram o país no ano de 2000 para sobre ele se despejarem uns milhões de dólares adicionais e, com isso, os políticos, os burocratas e os "ajudadores" darem mais um bom empurrão às suas vidas.

Tentando legitimar este estado de coisas, o discurso político repete, sem cessar, as velhas e gastas palavras do combate à pobreza absoluta, do desenvolvimento económico sustentado, da luta contra as doenças, sem apontar qualquer meta temporal, um prazo, por longo que seja, para colocar um ponto final na dependência. Também aqui, este tempo não resiste à comparação com um outro tempo, o da Frelimo de Samora que, certamente com voluntarismo, alguns excessos e muitas deformações, quis fazer dos anos oitenta a década da luta pelo desenvolvimento e pela erradicação da pobreza em Moçambique.

Após quase sete meses de permanência em Moçambique, o parasitismo dos pobres é, para mim, uma outra forma de expressão, certamente menos cruel mas inusitadamente mais cínica, da ordem mundial que vai impregnando as terras e os mares do nosso planeta. E em lugar do grito dos condenados da terra, como lhes chamou Franz Fanon, escutam-se as vozes dos parasitas reclamando a preservação dos pobrezinhos em nome do direito à vida, às suas vidas bem cuidadas e prazenteiras.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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