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O.F.N.I.s

O que são?

O.F.N.I.s são "objectos faladores ainda não identificados"- até agora. Passam despercebidos porque se transmitem boca-a-boca, como certos vírus, e são, como eles, criaturas de aparência insignificante. Mas se nos apurarmos não é difícil aprender a conhecê-los. É importante treinarmo-nos a fazê-lo ? Respondo por mim: é. Os OFNIs exercem uma influência perniciosa no modo como utilizamos o nosso mais fundamental aparelho cognitivo, aquele que nos irmana mais do que qualquer ideologia, credo religioso, doutrina política, partido, pátria, profissão, e assim por diante.

Falo, claro, do idioma que falamos, o Português, o mais inalienável, portátil e igualitário de todos os bens que herdámos dos nossos antepassados sem outro encargo que não seja o de bem cuidarmos dele; pelo qual não pagamos direitos de alfândega, que está isento de siza, taxas e emolumentos, que podemos utilizar grátis e sem limites de tempo, porque quanto melhor o fizermos mais fiável e fulgurante se torna. Mas que não está imunizado contra OFNIs. Mal comparado, os OFNIs são como manchas de ferrugem nesse aparelho que levou centenas de gerações a aprimorar e de cujo estado de afinamento todos somos corresponsáveis. Se deixarmos as manchas de ferrugem alastrar, elas abrem buracos por onde o nosso pensamento se perde em torvelinhos.

Brutuguês

Há várias estirpes de OFNIs. Uma das mais comuns receberá aqui o nome de BRUTUGUÊS. Um exemplo de Brutuguês ? Considerem então, antes de mais, as duas séries seguintes de palavras:

  1. cinéfilo/ cinefilia; bibliófilo/bibliofilia; columbófilo/columbofilia; lusófilo/lusofilia; etc
  2. xenófobo/xenofobia; lusófobo/lusofobia; agoráfobo/agoráfobia, etc.

Com uma forte ajuda dos gregos antigos, que nos cederam -filo/-filia e -fobo/-fobia, podemos compactar numa só palavra o que de outro modo exigiria várias. Em (A) todas as palavras, por força desses sufixos, significam uma pessoa que nutre um apreço genuíno, com um lastro afectivo da ordem da amizade ou do amor, por um tipo de objectos, pessoas, actividade, etc, ou a natureza desse mesmo sentimento. Em (B) os sufixos significam que predomina o sentimento oposto:desprezo, aversão, repulsa, inimizade, temor

Suponhamos, então, que queremos designar pessoas que nutrem sentimentos do tipo (B) relativamente a crianças, ou a natureza específica desse sentimentos. Fácil, do radical "pedo-", também ele oriundo do Grego, e que nos deu "pedagogo", "pediatra", etc, formamos "pedófobo" ou "pedofobia". E se quisermos designar sentimentos e pessoas (como pais, amas, educadores de infância e professores do ensino básico) da categoria oposta, (A), formaremos com o mesmo radical a palavra "pedofilia" e "pedófilo". Nenhuma

dificuldade nem novidade nisto: estas palavras podem encontrar-se num bom dicionário de Português. Se, porém, preferirmos falar Brutuguês faremos exactamente o inverso. Atiraremos "pedófobo" às urtigas e, no seu lugar, instalaremos "pedófilo". Passaremos a chamar assim à espécie mais execrável de pedófobos, aqueles que se especializaram no estupro de crianças.

Imaginação febril ? O leitor bem sabe que não. É neste Brutuguês vernáculo que fala quase toda a comunicação social, sem uma palavra de protesto do público (nós). O passo seguinte, se deixarmos, levará os telejornais a abrir em uníssono com notícias ao estilo "um cinéfilo encapuçado, depois de ter incendiado a Cinemateca de Lisboa, varreu à metralhadora, num acesso de columbofilia aguda, as pombas do Largo Camões, antes de pedir asilo político na embaixada da República X, onde todos os livros foram devidamente incinerados como é timbre dos países onde impera o fundamentalismo bibliófilo ".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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