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Os critérios da Alice

Lewis Carroll pôs a Alice à conversa com o Gato:

"Alice - Podes dizer-me, por favor, que caminho hei-de seguir a partir daqui?
Gato - Isso depende muito do sítio aonde queres chegar.
Alice - Não me preocupa muito onde vou chegar.
Gato - Então não interessa por que caminho hás-de seguir."

Na astrologia oriental, por acaso ou talvez não, também sou "gato" (um dos doze animais de Buda, entenda-se...). Também por acaso ou talvez não, uma Alice ansiosa (que não vive no País das Maravilhas) me telefonou. Concluídos os preliminares - "desculpa estar a incomodar-te", "sei que o teu tempo é pouco, mas...", "desculpa só te telefonar quando estou com problemas", etc. - lá foi directa ao assunto:

"Olha Zé, meteram-me numa equipa incumbida de elaborar "critérios de avaliação". É mais uma chatice por culpa do despacho trinta. E, agora, com esta coisa das competências, é mais difícil saber-se quando se deve dar um 2 ou um 3, não é?..."

E patati e patata, esgotada a retórica da praxe, compreendi que a Alice não estava interessada em elencar critérios de avaliação, mas em estabelecer patamares criteriais que dessem aos seus colegas alguma segurança em mais uma sessão de pregões, no conselho de turma de fim de período lectivo, que já se avizinhava. E eu, que até já tinha decidido não contribuir mais para este peditório, dei por mim a compadecer-me da angústia da Alice, provavelmente por efeito dos eflúvios natalícios.
Lá fui adiantando que definir "critérios de avaliação" não é o mesmo que ordenar "critérios de classificação", que a avaliação é um conceito mais vasto do que o de classificação, que a avaliação procura a posição do indivíduo relativamente a ele próprio, a objectivos e, por vezes, a um grupo, para identificar dificuldades, apontar soluções, para regular, facilitar e melhorar a aprendizagem, enquanto que a classificação determina a posição do indivíduo para o comparar com uma norma estabelecida, ou com posições obtidas por outros indivíduos. E por aí adiante... E nem a macei com o explicar da distinção entre grandezas qualitativas e grandezas quantitativas, entre variáveis discretas e variáveis contínuas, como se impunha para uma cabal distinção entre escalas.

"Pois... pois... está bem... Mas o que eu quero é orientação para fazer os critérios. Quando posso dar um 2 ou um 3" - interrompeu a Alice, mandando às malvas o sapiente arengar.

Vítima da tradição, a Alice sinonimizava avaliação e classificação, confundia rigor com raciocínio quantitativo. Estrategicamente, recuei o discurso para o registo do menor esforço: Na avaliação sumativa, a Alice não precisava quantificar e, dado que os juízos sumativos assentam em critérios para cada dimensão curricular, ela poderia fazer avaliação sumativa e não atribuir uma classificação, assim como seria possível classificar sem fazer avaliação sumativa.

"Está bem, Zé, és capaz de ter razão, mas o que é que eu vou apresentar aos meus colegas, nas reunião? Eles não são complicados como tu!"
"Diz-me o que queres dizer com o ser complicado." - devolvi.
"Tu sabes o que eu quero dizer. Eles só querem saber como hão-de dar as notas. Não se preocupam com essas coisas,"

Não dei réplica às "coisas". Fiz-me sonso e contra-ataquei:

"Diz-me lá de que dados dispõem os teus colegas, para poderem dar as notas."
"Temos as notas dos testes e mais algumas coisas..."

Como voltávamos às "coisas", quis saber quais, mas a Alice titubeou, terminando a não-explicitação das "coisas" num acto de contrição:

"Eu sei que sou uma chata, mas é como se cortássemos o programa às fatias e depois as puséssemos numa folha...Pode estar mal, mas..."

Poupei-a ao arrependimento e reatei o diálogo:

"E quantos testes fizeste neste período?"
"Só dois, porque o Conselho Executivo diz que não há dinheiro para mais fotocópias."

Senti que poderia fazer a minha boa acção diária. De modo que lhe fiz compreender que um teste determina o grau de desempenho relativamente a competências específicas e não-substituíveis. Por exemplo, o não saber o que são números decimais não pode ser substituído por saber multiplicar; o saber o que são seres vivos não pode ser substituído por saber o que são serviços públicos. Maeuticamente, questionei:

Por exemplo, um 14 num teste é um 14 relativamente a quê? A um objectivo? A um conjunto de objectivos?
Eu sei lá! - respondeu a Alice - "Na faculdade nunca me falaram disso."

A acreditar naquilo que desabafou ao telefone, da formação contínua nem quer queria falar. Só lá ia "pelos créditos... e pelos cabelos." (Alice dixit)
Sob o pretexto de completar a prédica suspensa, fui dizendo à minha amiga Alice que a indicação de valores (40%, 18 valores, 112 pontos...) servirá para enfeitar testes, mas pouco ou nada serve as intenções de uma avaliação sumativa. Não diz o que o aluno aprendeu, informa (e mal) o quanto aprendeu. Os testes, por si só, não fornecem indicadores fiáveis. Ela confessou que não sabia o que fazer, mas (que remédio!) lá teria de preencher as pautas, no fim do período. Ela e os outros professores que não se preocupavam com "coisas" de somenos importância.
Para abreviar, condensarei o teor da conversa. Com infinita paciência, fiz ver à minha amiga Alice que, numa escala de 1 a 5, um ponto, algures entre 2 e 3, é diferente dos outros. Esta escala considera dois níveis negativos e três níveis positivos. Entre 2 e 3 temos uma situação de critério (o mínimo relativamente às aprendizagens pretendidas). Mas que critérios podem ser estabelecidos para uma escala ordinal, partindo de resultados quase exclusivamente extraídos de testes de papel e lápis? É possível transpor os dados de uma escala intervalar para uma escala ordinal, mas não é aconselhável. Muito menos o será no final de um período ou ciclo e para todas as competências requeridas aos alunos. Um 5 não me diz quanto um aluno sabe mais do que aquele que teve um 4, ou o que sabe que o de 4 não sabia. É uma mera ordenação sem qualquer significado.
Aprontei a estocada final. Ainda com a Alice supostamente do outro lado do fio, fiz a síntese e a moral da história. Que, no tempo da "escola selectiva", a essência do sistema de avaliação era a classificação. Que, agora, esta se transformou num óbice à mudança na avaliação. Que não é possível reter um aluno apoiando a decisão numa mera escala ordinal. E que a questão não reside em "reter" ou "não reter", mas em aprender ou não ter aprendido determinado objectivo, ou conjunto de objectivos (ou competências...).
Aqui chegado, já nem os sussurrados hum... hum... com que sublinhava, de quando em quando, a professoral exposição, se faziam ouvir. A Alice não tugia nem mugia... Apurei se ela ainda estaria do outro lado do fio.

"Estou, estou. Continua.! Diz lá! - devolveu a Alice, indisfarçavelmente contrariada -
"Estou a tentar seguir o raciocínio..."

Em nome da razão, não prolonguei o pedagógico suplício, e a Alice aproveitou a interrupção:

"Estás para aí com esses pormenores todos mas, há uns anos, até houve um professor que teve a lata de me dizer "ó colega, dê lá o 3 ao rapaz, para ele passar!" E eu lá dei, mas o aluno nem um 2 merecia, fica sabendo!"

Por acreditar na inteligência dos professores e na da Alice, em particular, derivei:

"Ó Alice, tu leste o que dizia o Perrenoud, há dias, no "Público"?"
"Não, não li."
"Ele dizia que "é preciso mudar a forma centenária como a escola se organiza, pois os professores e os alunos perdem o seu tempo uma escola assim organizada".
"Não estou a perceber onde queres chegar..."
"Ó Alice, porque não se interrogam as escolas sobre o modo como estão organizadas? Por que continuam "organizadas de uma forma centenária"?

A Alice respondeu que "sempre foi assim" e amuou. Eu apenas lhe dirigi uma última pergunta:

"Se tu já percebeste que fazer e afixar pautas com números é pura perda de tempo e de energias, porque continuas a fazê-lo?"
"Isso não interessa. O que queres que eu faça, se estou sozinha? Se para lá vou falar destas "coisas" ainda me chamam maluca!..." - rematou a Alice - "O que eu quero é que me ajudes a resolver esta "coisa" dos critérios".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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