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Novas companhias de teatro no Porto: Na corda bamba

Depois da "travessia do deserto" que caracterizou a actividade teatral no Porto até final da década de oitenta - altura em que a produção de espectáculos por grupos da cidade partia quase exclusivamente da iniciativa da Seiva Trupe ou do Teatro Experimental do Porto (o Teatro Universitário do Porto, Os Comediantes ou o Tear apareciam menos regularmente) - os anos noventa viram surgir uma série de pequenas companhias que trouxeram um novo impulso à produção de teatro na cidade. Para este crescimento sem precedentes contribuiu decisivamente o aparecimento de escolas de formação de actores e de técnicos, como a Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE), o BalleTeatro ou a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE) do Instituto Politécnico do Porto. Até aí, lembre-se, a formação de profissionais em Portugal estava limitada a Lisboa e a Évora.

Foi neste contexto de multiplicação da oferta de formação que se constituiram grupos como "As Boas Raparigas vão para o Céu, as Más para Todo o Lado", o "Teatro Plástico", o "Teatro Bruto", o "Teatro Só" ou o "MetaMortemFase", para referir apenas alguns. Um período de euforia corolado pela realização da Capital da Cultura, em 2001, que agora entra num momento decisivo de questionamento face ao futuro próximo: quantas destas estruturas estarão preparadas para se afirmar como projectos autónomos e sólidos, tanto mais quando se sabe que os subsídios estatais atribuídos à produção teatral vão inevitavelmente diminuir ao longo deste ano?

Esta questão será tanto mais pertinente quando se sabe que a produção audiovisual - outro dos potenciais mercados para os jovens actores saídos destas escolas de formação - é ainda muito incipiente no Porto. A produção de 'spots' publicitários e a dobragem, por exemplo, só agora começa a despontar, havendo apenas duas empresas a dedicar-se exclusivamente a estas actividades. A única alternativa viável parece ser mesmo o mercado da capital, onde se concentra a produção nacional de televisão e de cinema.

António Capelo, actor e director artístico da Academia Contemporânea do Espectáculo, foi, juntamente com outros profissionais da Seiva Trupe, dos Comediantes e do Tear, um dos principais impulsionadores desta escola e, se assim se poderá chamar-lhe, da "nova vaga" de teatro no Porto. Apesar de se referir a esta 'movida' com algum entusiasmo, considera indispensável começar a questionar os espaços de criação estéticos e artísticos dos diferentes grupos, já que, na sua opinião, estes começam a trabalhar em "universos muito semelhantes".

É nesse sentido, diz, que "não faz sentido criar mais estruturas que trabalhem na mesma área estética e artística", mas antes incentivar os novos criadores a inovar e a ocupar nichos de mercado inexplorados, referindo exemplos como o teatro de repertório ou o teatro comercial, que, na sua opinião, poderão afirmar-se pela diferença e conseguir captar novas franjas de público.

Poder político é decisivo

Decidido em levar esta teoria à prática, o Teatro Há Força, constituído por quatro jovens finalistas do terceiro ano do curso de realização plástica da ACE (vocacionado para a cenografia, figurinos e adereços), quer apostar no teatro comunitário por oposição ao teatro "convencional", onde há "uma sala confortável e um público muito bonito, mas que não percebe a mensagem", refere Inês Fleming, uma das duas actrizes que compõem o grupo.

Assim, ao contrário do que habitualmente sucede, pretendem usar o teatro como uma "ferramenta educativa", trabalhando em relação directa com as populações e cativá-las através desta dialética, explica por sua vez Francisco Godinho, outro dos elementos do grupo. Apesar de ainda se encontrarem numa fase embrionária, preparam já uma peça encomendada pela Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica do Porto, que, em princípio, será estreada em Junho, trabalho que os está a sensibilizar particularmente pela adesão que estão a obter junto da comunidade. "Essa é a nossa principal satisfação: trabalhar em conjunto com as pessoas e retirar resultados positivos dessa cooperação".

Francisco Beja, professor da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, refere-se a este novo panorama com alguma cautela, alertando que a eventual formação de novas companhias não deve, sobretudo, obedecer a uma "lógica de auto-emprego". A sobrevivência, assegura, passará por uma nova geração de criadores que consiga desenvolver "projectos criativos, autónomos e com identidade própria", já que os existentes surgiram "encostados" a uma geração mais velha e a uma lógica de funcionamento que se encontra praticamente "esgotada". A experiência assim o demonstra: "Os grupos que sobreviveram em Portugal foram aqueles que estavam associados a projectos de criadores e não a cooperativas de actores".

Ouvidos pela Página, os actores da nova geração parecem não reunir consenso quanto ao futuro do teatro no Porto. Mário Santos, do Teatro Bruto - constituído em 1995 com base na Prova de Aptidão Profissional de um grupo de finalistas da ACE, à semelhança do que aconteceu, aliás, com a larga maioria dos grupos que surgiram na década de 90 no Porto -, vai mais longe ao considerar que o futuro poderá mesmo passar por algum tipo de "fusão" entre as companhias existentes. É que, segundo este jovem actor, começa a verificar-se aquilo que já há algum tempo se adivinhava: algo semelhante a uma selecção natural entre aqueles que conseguem "manter um trabalho regular e os que vão perdendo o ritmo", situação que levará, quase inevitavelmente, ao desaparecimento de algumas companhias e à incorporação dos seus elementos em outras estruturas.

No entanto, nem todos concordam com esta opinião. "Suponho que o futuro próximo de muitas destas companhias estará mais dependente do momento político que atravessamos do que propriamente dos espaços artísticos que cada uma ocupa", refere Céu Ribeiro, das "Boas Raparigas...", numa referência indirecta à possível mudança de governo e à política cultural gizada pelo eventual novo partido no poder.

Muitos teatros, poucas salas de ensaio

A realização da Capital Europeia da Cultura constituiu uma oportunidade única para lançar os novos grupos do Porto e dar-lhes um reconhecimento nacional e internacional que, de outra forma, dificilmente atingiriam. Além disso, e talvez mais importante, o evento "mostrou ser possível criar-se bons espectáculos a partir dos produtores da cidade", como refere António Capelo, ou ficar a saber-se os projectos que "marcam uma identidade própria", na opinião de Francisco Beja.

Mas não só. O Porto 2001 possibilitou também a reabilitação de alguns dos teatros da cidade - como aconteceu com o Teatro Nacional de São João, o Rivoli e o Auditório Nacional Carlos Alberto - este último ainda em fase de conclusão -, permitindo uma melhoria considerável da qualidade dos espaços de representação. A estes, juntam-se outras infraestruturas que, apesar de terem partido da iniciativa de outras entidades - como os teatros do Campo Alegre e Helena Sá e Costa - enriqueceram igualmente a oferta.

Mas se hoje há mais teatros, continuam a não existir espaços de trabalho para as companhias, como salas de ensaio devidamente apetrechadas. Nesse sentido, Francisco Alves, actor do Teatro Plástico, considera a capital da cultura como uma "oportunidade perdida". "Investiu-se muito em obras de fachada, mas pouco em infraestruturas que permitam aos actores da cidade terem um espaço próprio e com condições de trabalho adequadas", diz, opinião que é corroborada por Mário Santos: "O ano passado tivemos a sorte de fazermos espectáculos em salas bem apetrechadas, mas, em geral, as companhias não têm um espaço de trabalho próprio, onde possam ensaiar com tempo e desenvolver um trabalho continuado".

De acordo com as opiniões recolhidas, na cidade existem apenas duas salas de ensaio dignas desse nome: a do Rivoli e a do Teatro do Campo Alegre (com os quais nem mesmo o Teatro Nacional de São João consegue rivalizar), com o inconveniente de se encontrarem ocupadas durante a maior parte do ano com os espectáculos que ali são realizados.

É nesse sentido que o futuro Teatro do Bolhão - que será adaptado a partir de um antigo edifício localizado no centro da cidade, cedido pela autarquia - aparece como uma das principais apostas da ACE. É nele que António Capelo deposita esperanças para que se possa constituir uma "unidade de produção e de reflexão", onde grupos em fase de lançamento possam trabalhar com companhias já existentes, criando assim uma relação mais estreita entre a formação e a produção. Um espaço que pretenderá servir não só os alunos da escola, mas também a cidade e os seus criadores.

O "jogo" dos financiamentos

Apesar da crescente profissionalização, a auto-motivação e a persistência destes actores é ainda um factor determinante para o exercício da sua actividade. Os salários, quando os há, são baixos, obrigando muitos a recorrer a segundos empregos. As receitas de bilheteira, por si só, são manifestamente insuficientes para cobrir as despesas correntes. Os subsídios, estatais ou privados, assumem-se, por isso, vitais para o funcionamento das pequenas companhias.

Sara Paz e Magda Vaz, dos MetaMortemFase, reconhecem que, nestas circunstâncias, o teatro independente acaba por se tornar, em larga medida, "dependente" dos financiamentos atribuídos à produção. Muito por culpa da lei do Mecenato, dizem, que não incentiva as empresas e entidades privadas a investir nas companhias não-institucionais. O único patrocínio particular que alguma vez conseguiram angariar partiu de contactos pessoais de um dos elementos do grupo, mas ainda assim, queixam-se, a quantia apurada foi "irrisória".

Neste jogo dos dinheiros, o papel dos produtores é essencial. E por vezes ingrato. "Quando as coisas correm bem a produção não é notada, mas quando corre mal tem a responsabilidade de tudo e mais alguma coisa", diz Ada Pereira, ex-actriz do teatro Plástico, que resolveu dedicar-se a esta área não só por uma questão de gosto pessoal, mas em particular pelos níveis de "oferta e de procura" que se foram gerando nos últimos anos, em especial após o ministério ter regulamentado de forma mais apertada a atribuição de subsídios. Ainda há três anos, lembra, "só havia um produtor individual na cidade".

De acordo com a sua experiência, o teatro independente é aquele que sente maiores dificuldades em angariar financiamento, seja ele de origem estatal ou privada. "A lei do mecenato só tem interesse para as empresas quando se trata de grandes produções e estão envolvidas quantidades razoáveis de verbas", explica. Caso contrário, a contribuição é "ridiculamente pequena", muitas vezes paga através de serviços ou da cedência de material.

Curiosamente, o montante de financiamento inicial atribuído a um grupo pode permitir, por sua vez, assegurar com mais facilidade os financiamentos complementares subsequentes, como explica Ada Pereira, porque funciona como uma espécie de aval à "qualidade" do projecto. "Uma pescadinha de rabo na boca", ironiza, que gera um ciclo vicioso e vai contribuindo para aumentar as assimetrias entre companhias "ricas" e "pobres".

Ou seja, caso não se criem estruturas sólidas do ponto de vista financeiro e artístico para as companhias sediadas na cidade - ideia que, em última análise, se poderia estender às restantes companhias do país, nomeadamente às do interior - corre-se o risco de o cenário favorável que foi sendo criado poder esmorecer no prazo de alguns anos. Para impedir que isso aconteça, é não só necessário que o Estado as apoie de forma regular - nomeadamente para que elas possam contribuir, enquanto entidades empregadoras, para a absorção de futuros formandos na área do teatro -, como não assuma um papel "paternalista", como refere António Capelo, apostando em força naquelas que podem contribuir para a renovação e sedimentação do teatro na cidade, deixando de apoiar outras que, na sua perspectiva, trabalham em "zonas obscuras".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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