"A qualidade da democracia das sociedades ocidentais está
severamente ameaçada"
Apesar de se assumir como uma questão cada vez mais actual,
a Cidadania é ainda um conceito um tanto ou quanto ambíguo e desprovido de uma
teoria devidamente sustentada. Que papel pode assumir num tempo em que se constrói
uma "Nova Ordem Mundial", onde as desigualdades sociais e económicas crescem
diariamente? De que forma poderá influenciar as relações interpessoais e contribuir
para uma sociedade mais democrática e igualitária? Que papel pode ter na Educação?
Para responder a estas e outras questões convidamos Conceição
Nogueira, professora auxiliar do Departamento de Psicologia do Instituto de
Educação e Psicologia da Universidade do Minho, responsável pela disciplina
de Psicologia Comunitária, investigadora e coordenadora do projecto "Mulheres
e Cidadania". É co-autora, com Isabel Silva, do livro "Cidadania - Construção
de novas práticas em contexto educativo", das Edições Asa, que serve de mote
a esta entrevista.
Tendo em conta as mudanças operadas nas últimas décadas,
que levaram a transformações políticas, sociais e económicas profundas, como
se poderá actualmente definir o conceito de cidadania?
Definir actualmente "cidadania" é uma tarefa bastante complicada.
O termo cidadania tem sido expressão corrente nos últimos anos, mas dificilmente
podemos afirmar que existe uma teoria elaborada de cidadania. É um conceito
problemático, porque é ambíguo, e plural; quero com isto dizer que existem várias
concepções de cidadania, algumas delas bem contraditórias. Existem pelo menos
quatro concepções de cidadania que podem ser apresentadas. Uma ideia de cidadania
comunitarista, uma cívica-republicana, uma neo-liberal e finalmente a dominante
no pensamento ocidental presente, a concepção socio-liberal, que frequentemente
identificamos como apenas liberal.
Como definiria cada uma delas?
Na tradição comunitarista, cidadania implica a participação
social e o serviço comunitário para o Bem geral. Nesta perspectiva, "cidadania"
implica responsabilidade por assuntos e problemas que afectam outros cidadãos
da mesma comunidade, assim como trabalhar para a manutenção das tradições que
unem os indivíduos e os fazem sentir mais inseridos e apoiados. Apesar do valor
desta concepção essencialmente devido à ênfase na responsabilidade pela intervenção
comunitária, muitas dos seus adeptos têm frequentemente assumido posicionamentos
conservadores e frequentemente pouco respeitadores das diferenças.
Se a concepção anterior se apoiava numa lógica de participação
na comunidade de pertença - a um nível mais micro -, a concepção de cidadania
na tradição cívico-republicana considera a cidadania essencialmente como a participação
política. Oposta a esta última concepção, a cidadania numa perspectiva neo-liberal
é essencialmente um estatuto legal. Infelizmente, esta concepção começa ser
cada vez mais equacionada. Os seus adeptos tentam enfraquecer a importância
do domínio e prática políticas, enfatizando a liberdade e autonomias individuais.
Os cidadãos são essencialmente consumidores de bens públicos.
A tradição liberal tem sido a concepção dominante na maioria
das democracias liberais ocidentais desde a segunda guerra mundial. Nesta tradição,
a cidadania está associada a interpretações relativamente limitadas, formais
e legais. O termo implica o facto de se ter direito a direitos - liberdade de
expressão, de voto, ou benefícios sociais - assim como algumas obrigações legais
- pagar impostos ou servir as forças armadas. Os indivíduos devem ter toda a
liberdade possível para exercer os seus direitos e desenvolver as suas competências
individuais, sob o mínimo de interferência possível do Estado e dos seus concidadãos.
Do ponto de vista sociológico, esta concepção é considerada pobre. Em vez dela,
alguns sociólogos preferem definir "cidadania", como o faz Turner, como um conjunto
de práticas - jurídicas, políticas económicas e culturais - que definem uma
pessoa como um membro competente da sociedade.
O que gostava de enfatizar é que ao definir cidadania como
um conjunto de práticas evita-se a mera designação de cidadania como pacote
de direitos e deveres, legais, mas restritos do ponto de vista da acção.
O nível educacional e o acesso à informação, principalmente
nos países ocidentais, é cada vez mais elevado. No entanto, os cidadãos desinteressam-se
crescentemente pela vida política e pela participação cívica. Como se explica
esta tendência, aparentemente paradoxal? Será que este desinteresse poderá vir
a constituir um perigo para a democracia tal como hoje a conhecemos?
Em primeiro lugar gostava de lhe dizer que penso que a qualidade
da democracia das sociedades ocidentais está já severamente ameaçada. Em segundo
lugar é óbvio que também não podemos assumir apenas a participação política
como o cerne da cidadania. Há pouco referia precisamente que essa perspectiva
é apenas uma das perspectivas - a cívico-republicana. No entanto, concordo consigo
quando refere que problemas associados com a prática da cidadania podem constituir
perigo para a democracia.
Penso que num mundo orientado para o individualismo e para
o consumismo, dificilmente poderá haver uma participação dos cidadãos na vida
nacional, regional ou local. É que o individualismo que vemos actualmente ser
promovido é fruto da ênfase na autonomia individual, associado ao confronto
com as dificuldades associadas a um capitalismo desenfreado. Nos dias de hoje
existe cada vez mais instabilidade económica individual - veja-se as situações
de trabalho sem emprego, isto é, cada vez mais pessoas que trabalham e passam
recibos sem terem qualquer vínculo laboral. Esta progressiva individualização
implica dificuldades na organização e participação social e um enfraquecimento
das instituições, já que tudo se está a tornar mais precário e plural. Como
é possível que uma sociedade que permite e promove este tipo de vivência possa
estar preocupada com a participação cívica dos seus cidadãos e estes com as
suas responsabilidades?
Assim, quando fala de desinteresse, penso que poderíamos assumir
que este é talvez mais consequência do que causa da debilidade da democracia,
ou pelo menos que existe uma relação dinâmica. Não podemos assumir que os indivíduos
são eles próprios culpados. Em Psicologia usamos frequentemente a expressão
blame the victim (culpar a própria vítima), a qual penso que se adequa bem
a esta situação. É importante não esquecer que este individualismo passivo serve
muito bem uma ordem mundial de pendor essencialmente económico, que não valoriza
que os indivíduos se sintam ligados a qualquer tipo de sentimento colectivo.
Considerando que a liberdade implica responsabilidades,
alguns autores, referidos pelo investigador britânico K. Faulks, defendem o
voto obrigatório e o serviço público e comunitário como formas possíveis de
reforçar a interacção entre direitos e deveres, considerados como pilares da
cidadania. Outros, porém, consideram estas práticas formas de violação da liberdade
individual. Qual é o seu comentário?
Falei precisamente na questão anterior que frequentemente
o desinteresse manifesto na participação política é explicado por uma crescente
alienação das pessoas (e dos jovens em particular) pelas suas comunidades, e
que desta constatação se passa muito depressa para uma visão simplista e individualista
de declínio de valores morais e societais.
É evidente que para a existência de uma democracia verdadeiramente
democrática é importante uma cidadania activa. Quero dizer com isto que a participação
activa dos cidadãos em todas as instituições que o circundam implica que a comunidade
política promova as oportunidades necessárias para um exercício relacional entre
direitos e deveres, e não apenas a visão dicotómica actual e corrente de exigência
de direitos e responsabilidade por um mínimo de deveres. Por isso, os direitos
e responsabilidades de cidadania estão logicamente ligados entre si: os direitos
implicam responsabilidades. Todas as pessoas devem reconhecer os seus direitos,
respeitar os dos outros, assumir as suas responsabilidades e esperá-las dos
outros.
Esta ligação entre os cidadãos na forma de direitos e responsabilidades
recíprocos pode sustentar a comunidade política pelo menos de duas maneiras.
Em primeiro lugar, possibilita a construção de uma solidariedade entre os membros
de uma sociedade. Em segundo lugar, o exercício da cidadania é um processo educativo:
os indivíduos aprendem as técnicas da política, praticando-as.
No entanto a valorização da participação política dos cidadãos
coloca algumas questões relativas ao problema da liberdade individual, de quem,
por opção, não quer participar. É aqui que surgem essas estratégias que refere:
o voto obrigatório e o serviço à comunidade.
A vantagem da votação obrigatória seria obrigar as pessoas
a reconhecer que a luta por direitos que depois não se exercem torna paradoxal
a sua existência. Não votar representa esvaziar de significado um direito político
conquistado, e por outro lado implica negar a responsabilidade de se participar
na vida política que a todos diz respeito. O voto é uma responsabilidade cívica
assim como um direito individual.
Outra política que alguns autores consideram que poderia promover
a relação entre direitos e deveres é o serviço na comunidade. Este serviço podia
incluir apoio a deficientes e idosos, contribuir para a manutenção do ambiente
ou trabalhar para promover actividades comunitárias culturais. O ponto importante
nesta questão é que o serviço comunitário permitiria construir solidariedade
entre cidadãos, particularmente se fosse desenhado de forma a assegurar uma
mistura saudável entre classes sociais e grupos étnicos. Idealmente, as responsabilidades
de cidadania deveriam tomar a forma de obrigações voluntárias.
Muitos críticos acham que a votação obrigatória e o serviço
á comunidade podem representar uma violação à liberdade individual. Se se aceitar
que os direitos dependem da manutenção das instituições comuns, as pessoas poderiam
estar mais receptivas a aceitar a necessidade de promover ou aumentar os deveres.
Para os proponentes destas estratégias, propostas deste tipo dificilmente destruiriam
a escolha individual. Argumentam que à parte o dever de obedecer à lei, pagar
os impostos e possivelmente ser júri, os cidadãos têm poucos deveres, já que
nas sociedades liberais a política faz poucas exigências.
Penso que estas duas situações exemplificam bem alternativas
possíveis, juntamente com muitas outras. Como diz Boaventura Sousa Santos, estamos
num período onde é melhor agir e experimentar do que esperar.
A chamada globalização - normalmente entendida como uma
outra forma de relação entre a sociedade e a economia, baseada no aumento da
competitividade, liberalização dos mercados a nível mundial e revolução tecnológica
- não estará a dar primazia à vertente económica em preterência da vertente
humanista?
A sociedade tem o dever de providenciar a cada cidadão as
suas necessidades básicas. O Estado assumiu esta responsabilidade no período
pós-guerra através da institucionalização dos direitos sociais. O Estado-Providência
garantia que qualquer pessoa, independentemente da sua condição no emprego,
não vivesse na pobreza. Os direitos de segurança social permitiam e asseguravam
que um capitalismo civilizado (através da gestão de recursos públicos), apesar
de manter as desigualdades e as legitimar, evitasse situações de pobreza. A
globalização e o progresso tecnológico têm promovido o crescimento de uma dinâmica
desigualitária, onde as desigualdades materiais e a perda de direitos colocam
em risco a prática da cidadania. As pessoas caíram em estados extremos de exclusão,
muitas de dependência e de profunda passividade.
Para tornar a cidadania significativa e dar aos indivíduos
a oportunidade real de utilizar os seus direitos e exercer as suas responsabilidades,
devemos reconhecer que a cidadania é sempre "dependente dos recursos". São necessárias
medidas e políticas que garantam as condições materiais necessárias ao exercício
de cidadania de todos os cidadãos, especialmente para os Estados mais pobres.
A política de "discriminação positiva", da qual talvez
o melhor exemplo tenha sido a posta em prática pela administração do Partido
Democrata de Bill Clinton, nos Estados Unidos, é uma política da diferença através
da qual se pretende salvaguardar quotas de representatividade na vida social
das diversas "minorias" - étnicas, económicas ou de género. Devem as minorias
ser protegidas através de direitos especiais?
Primeiro gostava de dizer que, apesar de muito frequentemente
assim ser assumido, obviamente que não se pode analisar a questão das mulheres
- quando refere o género - como uma questão de minoria. Acontece é que frequentemente
se referem situações de desigualdade e exclusão, similares a grupos minoritários.
A questão de se saber se grupos especiais devem ter direitos especiais, representa
o mesmo que nos questionarmos pela pertinência de uma cidadania diferenciada
e ainda se se pode considerar emancipatório a reivindicação de políticas de
diferença. A esse respeito existe no presente um debate muito aceso, cujo resultado
tem sido muito esclarecedor mas difícil para quem procura ideias para tomadas
de posição claras.
Em primeiro lugar, assumir de forma indiscutível uma cidadania
diferenciada implica aceitar que a existência de experiências partilhada por
grupos particulares são de tal modo essenciais, isto é, estáveis e estruturantes,
que implicam uma identidade particular e diferente. Ora é precisamente nesta
questão do essencialismo que reside o maior problema e a maior contestação a
uma cidadania diferenciada.
O facto de se aceitar que existem atributos ou características
fundamentais internas e persistentes nos indivíduos pertencentes a determinados
grupos implica a negação da pluralidade dentro das categorias, e acentua ainda
mais as características que são frequentemente a razão invocada da exclusão.
Cada pessoa possui múltiplas identidades e papeis sociais. Poderia ser muito
perigoso assumir que apenas um vector importante da sua identidade implicasse
uma cidadania diferenciada. Por exemplo, será que podemos assumir que as mulheres,
pelo facto de o serem, constituem uma categoria homogénea? O que poderá haver
de comum entre uma mulher branca de classe social alta e uma mulher negra emigrante?
Que experiências partilhadas tão fundamentais elas poderiam partilhar que justificasse
juntá-las em alguma circunstância particular? Como referi inicialmente esta
questão é muito controversa e insere-se no debate actual acerca da igualdade
e da diferença.
Este dualismo é frequentemente problemático e talvez haja
necessidade de o abandonar. Quero dizer com isto que é muito difícil tomar uma
posição inequívoca. Eu, por exemplo, concordo com as cotas para as mulheres,
ainda que provisoriamente, porque penso que o facto de elas não estarem representadas
a nível do poder político se deve a situações de desigualdade à partida que
obviamente condicionam a chegada e o resultado. No entanto, seria muito difícil
assumir essa situação de uma forma permanente. Mecanismos e estratégias de correcção
são mais facilmente aceitáveis. Tentar situações diferenciadas para correcção
de injustiças é diferente de assumir uma diferença essencial. Assumir uma política
da diferença baseada em identidades fixas implica basear a cidadania individual
em qualquer aspecto da identidade ou da pertença a um grupo. Penso que essa
situação é mais perigosa que emancipadora.
De um modo geral, que papel pode ter a escola na redefinição
do conceito de cidadania e na sua aplicação ao contexto social?
Facilmente os educólogos assumem que a educação assume no
presente uma faceta de ambiguidade. Ora se notam orientações claramente economicistas
ora se refere a importância da democracia. Fenómenos de exclusão social, desigualdades
crescentes entre classes sociais, manutenção da desigualdade associada ao sexos,
diversidade cultural e violência, são problemas que afectam as escolas de hoje.
Para uma mudança social que se pretende profunda, educar ou
formar para a cidadania representa a possibilidade de construção de novas práticas
verdadeiramente emancipatórias. Penso que só assim, e nessa experimentação,
a escola pode ter um papel verdadeiramente fundamental. Tendo por base o pensamento
de Paulo Freire, que adoptava uma posição optimista das possibilidades da educação
para a transformação social, penso que poderá existir, ainda, a possibilidade
de actualizar na escola uma educação democrática participativa que possa promover
a aprendizagem de práticas de cidadania mais activas e emancipatórias.
Para isso o conceito de cidadania deve ser equacionado em
termos da prática democrática ao nível dos contextos locais e concretos, apesar
de se poder equacionar hipóteses de participação múltipla, em termos mais globais.
Formar e educar para a cidadania através de práticas locais, de participação
individual e colectiva nos espaços de intervenção social envolventes, pode ser
exercitado na escola e em todos os locais de vida dos cidadãos.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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