"Os tempos mudaram. O mundo está doente, a sociedade não está
bem e o nosso país é reflexo disso." Li estas afirmações num jornal diário do
nosso país, nos últimos dias. Do contexto em que se inseriam inferi que eram
escritas por um jovem que se considerava da esquerda.
Mais do que a ingenuidade do jovem as afirmações merecem perguntas
e comentários que não cabem no espaço deste texto. Ficam algumas. Faça o leitor
outras.
Que os tempos mudaram não tenho dúvidas. Mas quando é que
o tempo não mudou? Não é da natureza do tempo e das sociedades mudarem continuamente?
Aparentemente, não é só este jovem a andar amargurado por
ver a sociedade mudar. Anda por aí disseminado um discurso de lamento quanto
à mudança do tempo. Lamentações que vêm por vezes daqueles que se negam a aceitar
o título de conservadores. Mas lá que gostariam de conservar hábitos, ideias,
"as conquistas", velhas crenças, sonhos, lá isso gostavam. Aflige-os não poderem
conservar o que o tempo, mesmo contra a vontade das gentes, se encarrega de
mudar. Queixam-se da mudança de valores, de hábitos musicais, das alterações
na comunicação social, no cinema, no clima!
O mundo está doente? Seria bom que o jovem - ou os adultos
que o levaram a esta depressão cultural e política - explicassem o que é um
mundo saudável.
Suponho que haverá mundos mais saudáveis do que outros. Possivelmente
a conversa sobre o que é um mundo saudável poderia ser produtiva. Talvez desta
caracterização da saúde e da doença social resultasse um programa de intervenção
social e política. Talvez seja um tema de conversa entre professores e alunos.
Mas já que o jovem afirma que o mundo está doente convém perguntar-lhe quando
lhe parece que ele tenha estado com saúde.
A leitura do depoimento do jovem parece indicar que ele considera
a sociedade salazarista saudável: "as histórias contadas pelos meus pais e por
camaradas mais velhos, fizeram com que na minha imaginação também as tivesse
vivido. Como tiveram força para nunca abdicarem da liberdade? Como resistiram
a perseguições e prisões? Como ousavam desafiar o patrão, o professor, o padre,
o regedor, o polícia, o Pide, o ministro...? Era um tempo de gente a sério.
O tempo em que valia a pena viver. Tempo de luta. Hoje, quase trinta anos depois
da Revolução, o país está doente".
"O Mundo está doente. A sociedade não está bem e o nosso país
é reflexo disso." Venha de quem vier esta é uma ideia pesada. Mais pesada vinda
de um jovem que nasceu depois de Abril. Conviria então que se perguntasse ao
jovem quando é que ele imagina que o mundo tenha estado bem de saúde e o país
bem quanto ao resto. A doença do país e do mundo é nova ou antiga? Apareceu
nos anos noventa, oitenta ou setenta? Adoeceu após Abril? Era saudável nos tempos
do PREC? O mal terá sido provocado pela liberdade e pela democracia como pensam
alguns saudosos do fascismo? A doença é mais antiga? Era saudável o mundo de
Hitler, Mussolini e Estaline? O Franquismo promoveu a saúde social em Espanha?
O colonialismo fez o mundo respirar saúde? A escravatura nunca existiu? O racismo
é uma doença da moda? Era saudável o Portugal do rotativismo e do caciquismo
do fim do século XIX e inicio do século XX? Abreviando, em Portugal foram saudáveis
os séculos de analfabetismo em que o povo se sustentou a boroa acompanhada por
azeitonas no interior e por sardinhas dadas à praia no litoral? Se o mundo de
hoje está de cama quando esteve saudável? Conviria que o jovem fizesse estas
perguntas aos pais e aos camaradas destes.
Afirma Todorov que "a memória histórica é a selecção, a partir
de certos critérios, da informação disponível e da orientação que se lhe dá".
A mim parece-me que o que está subjacente aos factos é mais importante que estes.
O discurso deste jovem preocupa-me pela qualidade da informação
que lhe está subjacente. Preocupam-me os critérios que usou na selecção da informação
a que teve acesso. É preocupante o resultado a que pode levar a acção política
dos mais velhos - pais, professores, camaradas - quando não procuram com os
jovens entender a realidade mas antes vender-lhes velhas ilusões, crenças e
frustrações.
Como devemos nós, pais, avós, professores, incorporar o passado
no princípio da acção a desenvolver no presente? Porque não viver sem maldizeres
permanentes e sem perder de vista o objectivo de contribuir para um futura menos
bárbaro, mais civilizado, límpido, humano, democrático, livre, justo? Como ser
um cidadão activo sem infernizar a nossa vida e a dos outros? Em suma, como
ser pessoa politicamente saudável?
O que está subjacente ao discurso do jovem é bem mais importante
do que as palavras que escreveu. No jovem, nos professores ou nos políticos,
o subjacente às palavras e aos actos não é o que mais importa entender? É capaz
de ser.
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