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Estados translúcidos

Ensinam-nos os especialistas da história do ocidente que a racionalidade é um traço fundamental do comportamento das nações, das instituições e dos indivíduos ao longo do período que convencionou designar-se por modernidade. A racionalidade usa a razão sobre todas as coisas, expulsa a crendice através do raciocínio, o erro através da lei, o desmesurado através da medida, o proto-pensamento através da lógica. O espírito à solta, entregue aos seus devaneios, errâncias e obscurantismos, é domesticado pela filosofia e pela ciência, que devem devolvê-lo à utilidade da análise, da fórmula, da teoria - e finalmente das suas implicações tecnológicas e das suas capacidades prognosticantes. Devíamos logo ter desconfiado deste programa como princípio geral de governo e como horizonte social e ético a seguir. Inebriados, porém, com o aspecto arrumado e produtivo que as nossas sociedades iam ganhando, só agora estamos, aos poucos, a desconfiar da razão e a valorizar outras existências do espírito e outros modos de olhar para além da luneta científica.

Não é finalidade desta crónica explicar porque devemos desconfiar da razão como princípio fundador da nossa relação com as coisas. Mas sempre diremos que se detivermos a nossa análise sobre o que as pessoas realmente fazem ao existir e ao tomar decisões no dia a dia, desde o primeiro ministro ao carteiro da nossa rua, desde o gestor duma empresa ao educador na sala de aula, descobrimos rapidamente o quanto dispensam a razão ou o quanto produzem razões ad-hoc para justificar condutas cujos princípios de acção são de outra ordem - por exemplo a intuição e a experiência comum. Atravessámos toda a modernidade em fuga à razão, fingindo-lhe obediência e admiração - somos, enfim, seres transgressivos, que aceitam a ordem e desdenham dela no mesmo gesto.

Ora, as substâncias capazes de produzir estados alterados de consciência, de percepção, de humor e de comportamento são precisamente os elementos que, ao longo da modernidade, se têm vindo a inscrever na cultura ocidental à revelia do seu projecto racional. Se este é auto-contido, prudente, vigil e lúcido, os estados alterados de consciência são provocação dos limites, assumpção do risco e estado translúcido. Os estados translúcidos são aqueles em que se vive a paz da narcose ou a excitação da viagem: atravessam transversalmente a lucidez, ampliando-a ou desvanecendo-a, voltando-a para o mínimo pormenor do exterior ou multiplicando a mais insignificante ideia interior. São translúcidos também perceptivamente: coam a luz e os sons habituais, desdobram-nos, transportam-nos para locais insuspeitos.

As drogas revestem-se, pois, dum interesse estratégico desde que os primeiros navegadores espanhóis, portugueses e ingleses as trouxeram para a Europa: enquanto mercadoria participaram da lógica capitalista; enquanto remédio participaram da lógica bio-médica nascente; enquanto psicotrópico seriam o instrumento de aventura do espírito e de projectos paralelos ao da disciplina do corpo, do psiquismo e do corpo social que marcou o ocidente sobretudo desde a revolução industrial. Têm, desde o seu aparecimento, um duplo estatuto integrador e de fuga à convenção - são remédio e veneno.

A coluna "Estados Translúcidos" que hoje aqui abrimos propõe-se, ao ritmo regular duma crónica mensal, reflectir sobre o fenómeno droga, desde o tempo em que era elemento inscrito e reforçador dos padrões culturais até ao tempo presente, em que se fez entidade desviante e produtor de marginalidade e de repressão juridico-penal.

Levaremos o projecto adiante com dois companheiros de investigação deste domínio: do lado da antropologia, Luís Vasconcelos propor-nos-á uma leitura socio-cultural da vivência dos psicotrópicos em diferentes culturas - de modo a que, pelo contraste e pela comparação, lancemos luz sobre os nossos próprios estados alterados de consciência; pelo lado da psicologia do comportamento desviante, Rui Tinoco reflectirá sobre as condições e os processos que fizeram de meras substâncias químicas centro de complexos fenómenos desviantes na actualidade. Enfim, a proposta é a de criar, ao longo dos meses em que aqui comunicarmos, entendimentos lúcidos sobre os estados translúcidos.


  
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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