Como habitualmente, o crepúsculo do ano carrega consigo as
reuniões dos países e organizações doadores com o governo moçambicano. Agrupados
no Grupo Consultivo, decidiram responder generosamente às necessidades financeiras
manifestadas pela parte moçambicana: em vez dos 600 milhões de dólares solicitados,
concederam mais de 720 milhões. É costumeiro dizer-se que "quando a esmola é
grande o pobre desconfia". Ou será que estamos perante um inusitado desvio altruísta
de quem não é suspeito de tais sentimentalismos?
A começar pelos senhores do império, passando pelas instituições do chamado
"consenso de Washington", e terminando nas que pululam em redor das Nações Unidas,
sem esquecer as Organizações Não-Governamentais, todos consideram Moçambique
um "bom aluno": aplicado, nunca ausente das aulas, fazendo sempre com rigor
os trabalhos de casa. No final de cada ano "escolar" o nosso bom aluno é avaliado,
aprovado com distinção e premiado com um generoso pacote de dólares americanos.
Observando, deste lado do Índico, o desenvolvimento do muito gasto e universalizado
programa de "reajustamento estrutural", tudo se torna transparente. Tal como
no passado, na época dos impérios coloniais, a periferia continua sujeita ao
domínio e aos interesses dos que hegemonizam o sistema mundial. Neste contexto,
perante o descalabro africano e décadas de sucessivos falhanços nas políticas
de desenvolvimento, Moçambique é utilizado como tábua de salvação, um exemplo
da boa transição a mostrar ao mundo por aqueles que ditam as regras que o conduzem.
A situação no terreno é, e eles sabem-no, bem diferente. A vida do bom aluno
continua miserável e, sobretudo, crescentemente dependente da ajuda externa.
Apresentando-se as coisas deste modo, ganha sentido a convocação saudosa do
tempo de Samora Machel feita pelos mais pobres e pelos que, não o sendo, conservam
a decência, essa qualidade humana ausente e esquecida nestas paragens. Nesse
tempo, hoje diabolizado pelo pensamento único e enjeitado pelos arautos locais
do neoliberalismo, a dignidade não era uma palavra vã. Nesse tempo, de pesadas
dificuldades e grandes carências, o pouco que existia era partilhado com razoável
equidade. Nesse tempo, do carapau transformado em prato único de todas as refeições,
o roubo e a corrupção eram combatidos com energia e, sobretudo, com boa-fé.
Hoje, decorridos quinze anos do desaparecimento trágico de Samora e quase dez
do fim da guerra de desestabilização, nas cidades e nos campos, viver é cada
vez mais um exercício de vida ou de morte, embora não seja menos certo que uma
pequena minoria tenha prosperado a uma velocidade estonteante.
A elite política e económica é, qual santíssima trindade coxa da periferia,
a mesma pessoa, constituindo-se na gestora local da globalização-colonização
de que nos fala o teólogo brasileiro Frei Beto. Antes de partir para Moçambique
não alimentava, a este respeito, qualquer ilusão. Simplesmente, a realidade
excede, largamente, as projecções mais desassossegadas. Como aqui me costumam
dizer, aqueles que vivem na Europa e nunca estiveram nesta África não conseguem
acreditar naquilo que se pode contar. Afinando a crítica, a classe política
moçambicana, tal como as suas irmãs do continente, não é classificável. Perdeu
toda a honradez, conquanto tenha acrescentado propriedade e grandes privilégios
aos pequenos privilégios fruídos no tempo de Samora.
Num processo semelhante ao vivido na União Soviética e em outros países socialistas,
a burocracia apropriou-se dos bens do estado, transformando-se na nova burguesia
nacional e dirigente. Completamente parasitária e subordinada ao grande capital
globalizado e à hiper-burguesia transnacional, a troco de um punhado de dólares
permite, melhor dito, participa, imitando os capatazes do velho colonialismo,
na pilhagem das matérias-primas e de todos os demais recursos naturais do país
sem que isso pouco ou nada aproveite aos moçambicanos. Assim, nestes dias de
multipartidarismo e de "democracia" o que importa é a preservação do poder,
como me dizem (e mostram com a prática) antigos e actuais dirigentes da Frelimo.
Compreende-se... E o que acha o povo, o cidadão da rua e do mato que passa mal?
Acha normal! Acha normal que eles roubem, reclamando somente que devem deixar
um pouco para os outros. Como, algures em Mandlakazi, alguém me confidenciou,
é natural um pai ficar com a maior fatia do bolo. Só não é aceitável comê-lo
sozinho e, com isso, não fazer a partilha das fatias menores com os filhos.
O que nos levaria para uma longa discussão sobre o socialismo em Àfrica, em
sociedades tradicionalmente desiguais, no presente como no passado ciosas das
hierarquias, onde os chefes, pequenos e grandes, detêm uma posição dominante
em todos os contextos onde se consome a vida social.
Fernando Bessa Ribeiro / UTAD
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