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A formação como dever profissional ou a aprendizagem como errância

Nenhuma aprendizagem evita a viagem. Sob a orientação de um guia, a educação empurra para o exterior. Parte: sai. Sai do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa paterna e as paisagens juvenis. Ao vento e à chuva: lá fora, faltam todos os abrigos. As tuas ideias iniciais não repetem senão palavras antigas. Jovem: velho tagarela. A viagem dos filhos, eis o sentido despido da palavra grega pedagogia. Aprender provoca a errância.

Michel Serres . 1993


Já o sabemos, estamos hoje confrontados com a necessidade de responder a desafios imensos num mundo especialmente problemático, onde é dificíl ser adulto, quanto mais um adulto de referência. Foi esta a ideia que fiz questão de sublinhar num texto anterior, centrado nos aspectos que evidenciam a responsabilidade do professor enquanto agente de proximidade e de contágio humano. Precisamente, tendo sempre em conta a relevância antropológica da relação que justifica o encontro pessoal entre educador e educandos, entendo que a formação, reconhecida como direito e simultaneamente como dever em sede de estatuto de carreira, deverá ser vivida pelo pessoal docente também como exigência ética.
As respostas sociais e educativas, reclamadas pela contemporaneidade, convocam-nos para a necessidade de desenvolver um pensamento cada vez mais complexo, sustentado num processo paciente de aprendizagem que deve acontecer ao longo da vida. Esta necessidade torna obsoleta a visão de um professor-funcionário, simples intermediário de um saber apresentado em versão acabada, como acontece numa perspectiva tradicional. Numa sociedade que se pretende educativa, o papel do professor não poderá ficar confinado ao de mero transmissor de verdades feitas. O reconhecimento do carácter aproximado e provisório das nossas certezas obriga o pensamento a romper com a doce familiaridade do mundo onde a razão se compraz satisfeita. É preciso que o espiríto arrisque a ir até onde faltam todos os abrigos, como refere Michel Serres.
A aprendizagem significa sempre errância, aventura e abertura ao diferente, com tudo o que isso implica em termos de incomodidade, de risco e de esforço. Na verdade, face ao ritmo alucinante de produção científica que caracteriza hoje o nosso mundo, torna-se imperativo promover uma cultura de aprendizagem permanente que, mais do que uma simples actualização, torne possível, na medida das nossas necessidades e dos nossos sonhos, transformar a informação em conhecimento. Um conhecimento útil, funcional, que ajude a responder às exigências práticas do quotidiano mas que não se desvie, nunca, da referência obrigatória ao sentido que deve iluminar a utopia do humano. É que sem esta exigência de sentido, sem capacidade critica, arriscamos prender o possível à esfera da necessidade e da economia, hipotecando assim um futuro que queremos mais solidário e mais justo.
Ora, há que não esquecer que no processo de formação ao longo da vida que diz respeito a todos, o professor não é um aprendiz qualquer, ele tem a enorme responsabilidade de liderar o processo de aprendizagem de outros. O que, reforçando o estatuto ético da sua actividade profissional, justifica a disponibilidade para percorrer um caminho de formação por vezes solitário, pessoal, outras vezes partilhado e colegial, mas sempre fascinante e compensador. Porque a par do desconforto e da certeza dos obstáculos, a aprendizagem, como toda a aventura, implica também a emoção e o estremecimento da descoberta. Importa para isso que a formação possa ser valorizada também como direito, como mais uma oportunidade de exercicio de autonomia e de maturidade profissional. A formação contínua de professores não pode, nesta medida, ficar refém de principíos de ordem administrativa e burocrática.
Parafraseando Daniel Innerarty (1996), podemos considerar como traços próprios do pensamento profissional dos docentes os principios que, segundo o autor, devem presidir a todo o filosofar destacando, entre outros: o deixar-se invadir por uma incorrigível curiosidade, o ser-se consciente de que é mais interessante o que nos surpreende do que aquilo que nos dá razão; que é preciso fazer menos barulho e cultivar o silêncio atento; demorar as respostas e evitar sobretudo a precipitação; ter flexibilidade mental e praticar essa ginástica do espírito que consiste em ouvir; desconfiar da segurança ostentosa; não sentir-se incomodado perante perguntas para as quais não temos resposta imediata; aprender a tirar proveito do próprio desconcerto e fugir do enquistamento nas suas diversas formas: intelectual, moral ou política.
Alicerçada nestes pressupostos, a formação surge-nos como um dos eixos estruturantes de uma cultura profissional marcada pelos ideais de reflexividade, de rigor e por um exigente sentido de humanidade. Acredito que só assim será possível "prender" os outros, os alunos, num processo de ensino e de aprendizagem que, como muito bem sabemos, pode ser fascinante mas não é fácil. Sobretudo em contexto escolar, o aprender a aprender exige trabalho, esforço, paciência e disciplina. Virtudes fundamentais na educação e na vida.

Isabel Baptista / Universidade Portucalense
Referências
  • Daniel Innerarty. 1996. A Filosofia como uma das Belas Artes. Teorema
  • Michel Serres. 1993. O Terceiro Instruído. Instituto Piage

  
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Edição:

N.º 108
Ano 10, Dezembro 2001

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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