"Estamos de regresso a uma política
de quase-mercado educacional"
denuncia Maria Emília Vilarinho, em entrevista à Página
"A lógica pedagógica deve sobrepor-se
à lógica técnico-administrativa"
alerta Maria Emília Vilarinho, referindo-se à educação de Infãncia
Maria Emília Vilarinho iniciou o seu percurso profissional
na Escola Normal de Educadores de Infância de Viana do Castelo, licenciando-se
mais tarde em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto. É investigadora do Centro de Estudos em Educação
e Psicologia do Instituto de Educação e Psicologia e foi investigadora do Projecto
de Investigação da Infância em Portugal do Centro de Estudos da Criança, ambos
da Universidade do Minho. Actualmente é docente do Departamento de Sociologia
da Educação e Administração do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade
do Minho, tendo em fase de preparação o doutoramento em educação na área de
conhecimento da política educativa.
Além de diversas comunicações em congressos nacionais e internacionais, bem
como de colaborações nos encontros promovidos pelo Sindicato dos Professores
do Norte e FENPROF, tem publicado trabalhos nos domínios das Políticas de Educação
e da Sociologia da Educação da Infância, sendo o mais recente o livro "Políticas
de Educação Pré-Escolar em Portugal (1977/1997)" editado pelo Instituto de Inovação
Educacional. Uma obra que serve de referência à entrevista que se segue, na
qual a autora questiona o rumo da política educativa para o sector e critica
a orientação neo-liberal de um governo que se tem vindo a desapaixonar pela
educação.
Uma das prioridades da intervenção política do governo
socialista era a Educação. Nesse contexto, propunha-se dotar o país, até ao
ano 2000, de uma rede de educação pré-escolar que atingisse uma taxa de cobertura
de 90%. Esse objectivo foi atingido?
Não, de forma nenhuma. Os dados do Departamento de Avaliação
e Prospecção do Ministério da Educação, relativos a 1999/2000, apesar de premilinares,
indicam que a taxa de frequência aumentou, mas ainda se situa em 72,1%. Mas
é necessário ter em atenção que nestes dados estão incluídas as taxas de frequência
dos jardins de infância da rede pública e da rede privada, com ou sem fins lucrativos.
O conceito de Rede Nacional de Educação Pré-Escolar é um
pouco ambíguo, não é? Aliás, no seu livro "Políticas de Educação Pré-Escolar
em Portugal, 1977-1997" chama a atenção para isso mesmo...
Sim, nesse trabalho, que analisa as políticas de educação pré-escolar
entre 1977 e 1997, chamo desde logo à atenção para a "ressemantização" - para
usar as palavras de Licínio Lima - do conceito de Rede de Educação Pré-Escolar
presente na actual Lei Quadro, aprovada em 1997. Isto porque num primeiro período,
a que que eu chamei de "fase de criação, expansão e normalização", entre 1977
e 1986, entendia-se como educação pré-escolar toda a rede infraestrutural e
de serviços de carácter público, gratuito e laico oferecidos pelo Estado às
crianças entre os 3 meses e os 6 anos de idade. Actualmente, a Lei Quadro integra
no conceito de Rede Nacional a rede pública, a rede privada solidária e a rede
privada.
Em que consistiu o trabalho que resultou no livro atrás
referido?
O meu trabalho de investigação consistiu no estudo da construção
e implementação das políticas educativas públicas para este sector, através
da análise crítica do discurso oficial e das condições da sua produção - para
o qual recorri a todo o quadro legislativo produzido, a discursos produzidos
pelos partidos políticos, nomeadamente a actas da Assembleia da República -
o que me permitiu confirmar que existe uma desvalorização da dimensão política
desta área educativa. As conclusões que retirei foram que, por um lado, ao longo
do desenvolvimento desta rede se observou uma disputa entre duas concepções
de Educação Pré-escolar - uma que se assume como complementar à família e com
uma função social e outra que se assume como a primeira etapa da Educação Básica
com uma função educativa - e, por outro, que o Estado foi assumindo diferentes
papéis na expansão da rede pública nestes últimos vinte anos.
Como está estabelecida a oferta no território nacional?
Deve concerteza haver uma preponderância na zona litoral, mas a oferta no interior
cobre as necessidades?
Mais uma vez se coloca em causa aquilo que é a taxa de frequência
da rede de educação pré-escolar pública e da rede privada e solidária. Mas,
em qualquer caso, as assimetrias continuam a verificar-se. Nas grandes cidades,
por exemplo, existe uma fraca implantação dos jardins de infância públicos e
continua a haver uma forte implantação das Instituições Particulares de Solidariedade
Social (IPSS).
Nesse contexto, qual é a lógica de expansão da rede?
Acho que ainda não existe uma reflexão séria sobre essa matéria.
O Ministério da Educação criou, do meu ponto de vista, o mito da expansão da
educação pré-escolar ao afirmar que a taxa de frequência está a aumentar. Ela
está a aumentar, é um facto, mas à custa das instituições privadas, sobretudo
das de cariz solidário, quando, na minha opinião, essa expansão deveria assentar
na criação de jardins de infância públicos. O Estado tem o dever, e a Constituição
a isso o obriga, a proceder à universalização e gratuitidade, ou seja, tem o
dever de garantir a igualdade de acesso a todas as crianças.
Que, apesar disso, é letra morta...
Sim... Apesar de ter conhecimento de alguns jardins de infância
das IPSS que estão a assumir essa prerrogativa - nomeadamente no distrito de
Braga, que é o meu contexto de trabalho mais próximo - isto é, onde a componente
educativa está isenta de qualquer pagamento. No entanto, o número de crianças
abrangido é reduzido e há situações que me preocupam, nomeadamente a actual
estrutura de organização da rede pré-escolar pública e as suas consequências
ao nível da universalização e gratuitidade.
É o que acontece, por exemplo, com a componente sócio-educativa (o prolongamento
de horário), que nos jardins de infância públicos está a ser assumida sobretudo
pelas autarquias ou por serviços concessionados, onde os encarregados de educação,
independentemente da sua situação sócio-económica, pagam doze e treze contos
em igualdade de circunstâncias com os restantes - o que do meu ponto de vista
é uma grande fonte de injustiça social -, contrariando inclusivamente o critério
do rendimento per capita que tem orientado a política de comparticipação das
famílias.
Na prática, trata-se da introdução de um mecanismo de mercado que desresponsabiliza
o ME de assegurar a componente sócio-educativa. O que é mais absurdo é esta
prática predominar nos jardins de infância públicos mais do que nas IPSS. O
ME comparticipa com 5.000$00 e 2000$00 por criança para subsidiar as refeições
e os custos do prolongamento do horário, respectivamente. É pouco, mas se os
municípios assumirem o pagamento dos técnicos que trabalham com as crianças
na componente sócio-educativa, esta componente pode ser gratuita e as refeições
poderão ter preços idênticos aos praticados nas cantinas das escolas dos Ensinos
Básico e Secundário.
O que a leva a concluir no seu livro estarmos ainda longe
de atingir a universalização e a igualdade no ensino, em particular na educação
pré-escolar ?
Sim, pelas razões que já apontei anteriormente - não se observa
uma estratégia clara de criação de jardins de infância públicos. E, não existindo,
a opção das famílias está condicionada à colocação das suas crianças em jardins
privados. Isto só mostra que, à parte do discurso retórico da mobilização das
comunidades e da sociedade civil, a opção, e não se podendo generalizar, foi
claramente outra, no sentido de satisfazer interesses de lobbies locais.
Qual é a percentagem dos jardins de infância da Rede Nacional
que está directamente a cargo das instituições do Estado?
Não tenho bem presentes os números - neste momento estou a
preparar a minha tese de doutoramento e nela estou a refinar os dados -, mas
de qualquer forma o Jornal de Notícias, numa reportagem sobre a situação actual
da EPE e citando dados do DAPP/ME, registou que em 1999/2000 a rede privada
recebeu mais cerca de 15 mil crianças do que a rede pública. As estatísticas
do Ministério da Educação, quando são apresentados à comunicação social, englobam,
através do actual conceito, a totalidade da rede. Esta questão é extremamente
relevante já que denota, na minha perspectiva, que as instituições, os profissionais
e mesmo alguns partidos políticos não estão atentos ao debate político em torno
destas questões; e o próprio conceito de rede nacional de educação pré-escolar
é um reflexo disso porque está arredado da discussão acerca dos efeitos deste
modelo na questão da equidade social.
Na minha opinião, não se pode dissociar a construção das políticas educativas,
seja para a infância seja para outros níveis de ensino, dos contextos social,
económico e político em que elas são produzidas. E se recordarmos, a partir
da década de 80, quer em termos nacionais quer em termos internacionais, tem
havido reconfigurações culturais que têm levado a uma despolitização dos discursos,
inclusivamente do discurso educativo, fazendo "esquecer" que quer a Constituição
quer a própria Lei-Quadro responsabiliza o Estado por uma oferta pública e gratuita.
Refere no seu livro que o Estado foi-se afastando nas últimas
duas décadas do papel de promotor directo, para se assumir actualmente como
"mobilizador e regulador". A actual Lei Quadro reflecte essa orientação?
Sim, porque os dados que recolhi evidenciaram que a actual
Lei Quadro (Lei nº 5/97) está influenciada pela orientação neo-liberal de educação
que se vinha observando neste nível de educação, desde o período anterior de
governação social-democrata. Aquela orientação é visível na argumentação da
escolha parental e da necessidade de participação da sociedade civil, o que
levou à ênfase da pluralidade de oferta de serviços e à aceitação que a rede
pública possa ser supletiva da rede privada e privada solidária. Assim, o Estado
distanciou-se gradualmente do papel de promotor directo e aproximou-se dos papéis
de mobilizador e regulador das iniciativas da sociedade civil. Todavia, houve
algumas alterações significativas na Lei-Quadro no sentido de uma maior aproximação
das redes e de uma maior regulação do Estado no sector privado solidário. Como
se sabe, com a lei de autonomia das IPSS, publicada em 1979, estas ganharam
grande autonomia. O Estado continuou a comparticipar, mas não tinha meios para
fiscalizar o seu próprio financiamento. A actual Lei Quadro é importante neste
sentido porque criou mecanismos de supervisão e inspecção e também ao atribuir
a tutela pedagógica ao ME.
Aliás, refere também no seu livro que as alterações à Lei
Quadro acabaram por "previligiar os interesses das entidades cooperativas e
privadas". Quer esclarecer o sentido da sua afirmação?
Se recuarmos ao período a que chamei de "retracção" das políticas
públicas - que corresponde ao período de governação do Partido Social Democrata
-, verificamos que o D.L. nº 173/95 abre a possibilidade de criação de alguns
jardins de infância através da celebração de contratos-programa, não salvaguardando,
na minha opinião, o direito das crianças à educação. Porém, a actual Lei-Quadro,
elaborada já na vigência do governo socialista, não se distancia muito desta
posição porque continua a valorizar a diversidade da oferta e a não considerar
o Estado como primeiro promotor. Ao ser salvaguardado na lei o princípio da
complementariedade de serviços, o Estado cedeu às pressões daquelas entidades,
que se sentiam ameaçadas pela concorrência dos jardins de infância públicos
pois estes passaram a assumir a componente sócio-educativa. É neste sentido
que ela serviu as instituições de carácter privado e solidário.
Não quer dizer que elas não tenham legitimidade de existir, pelo contrário:
durante muitos anos serviram de "tampão" às necessidades de assistência social
e algumas funcionam até extremamente bem; mas é importante ter em conta que
a Lei Quadro favorece a expansão das IPSS e, se verificarmos, é isso que tem
vindo a acontecer, nomeadamente através de um conjunto de normas e de despachos
que prevêm o apoio financeiro a instituições privadas de solidariedade social.
Esta é uma questão muito polémica - ideológica, assumo-o -, mas do meu ponto
de vista o Estado deveria assumir-se antes de tudo como promotor, podendo e
devendo colaborar, em segunda análise, com essas instituições.
A educação para a infância do primeiro aos três anos de
idade tem sido, de alguma forma, negligenciada. Muitas instituições, aliás,
encaram-na como um "nicho de mercado", para utilizar uma expressão dos economistas,
porque não existe uma oferta pública que corresponda à procura. Qual é o seu
comentário?
Essa é uma questão interessante, porque olhando para a história
das políticas de educação pré-escolar verificamos que o Ministério da Educação
nunca assumiu o conceito de educação de infância, mas sempre o de educação pré-escolar
- dirigida, como se sabe, às crianças entre os três e os seis anos de idade
-, tendo sido, desde sempre, as instituições privadas e o Ministério do Emprego
e Segurança Social a assegurar o atendimento da 1ª infância.
A infância, como referem Chamboredon e Prévot, tem vindo a ser recortada em
idades. No que se refere às crianças mais novas são visíveis dois recortes -
o dos 0 aos 2 anos (sujeito pré-cultural) e o dos 3 aos 6 anos (sujeito cultural)
fazendo com que se tenha criado serviços diferenciados. O atendimento ao chamado
"sujeito pré-cultural" centra-se essencialmente nas necessidades fisiológicas
e psicológicas, ao passo que no atendimento ao "sujeito cultural" já se exige
uma resposta às necessidades educativas propriamente ditas. Estes recortes tiveram
como consequência uma diversidade conceptual e institucional dos serviços para
a infância, que resultou na criação das creches e dos jardins de infância.
Paralelamente a esta questão existe um problema grave, que é o facto de
os educadores e educadoras que trabalham nas creches não serem contemplados
pelas mudanças relativas ao estatuto profissional impulsionadas pela Lei Quadro.
Os profissionais que trabalham com crianças com idades inferiores a três anos
não pertencem à dita Rede Nacional de Educação Pré-Escolar. Isto cria uma discriminação
muito grande. Esta situação é incompreensível quando o grau profissional e académico
dos educadores de uma e de outra valência é o mesmo e o trabalho nelas desenvolvido
tem um cariz educativo.
A Lei Quadro defende uma articulação com o 1º ciclo de
forma a promover-se uma "sequencialidade educativa". Esta posição não será uma
forma de "intencionalizar as aprendizagens tendentes ao sucesso escolar futuro",
como refere numa passagem do seu livro, e, dessa forma, condicionar a essência
da educação pré-escolar?
Na minha investigação chamo a atenção para esse facto. Começa
pelo próprio termo - educação pré-escolar -, que contém, em si, uma intencionalidade.
A expressão mais frequente entre os profissionais deste nível é a de educação
de infância. Eu própria cheguei a considerar o facto de romper com a terminologia
oficial nas passagens do livro, mas decidi mantê-la.
Na minha opinião, temos vindo a assistir, quer em termos internacionais quer
nacionais, a uma política de pré-escolarização precoce das crianças, à qual
os discursos neo-liberais centrados na "qualidade e eficácia" da educação não
serão alheios. Olhando para o contexto francês, por exemplo, e de acordo com
Plaisance, uma das teses para o aumento da frequência da educação pré-escolar
deve-se ao facto de a classe média se ter apercebido que este atendimento permite
à criança uma acumulação de capital cultural, essencial para o sucesso nos níveis
escolares subsequentes.
Ora, não é esta a vocação da educação pré-escolar. Esta tem estatutos, finalidades
e objectivos específicos, que estão, no caso português, bem explícitos na Lei
de Bases do Sistema Educativo, na Lei Quadro e nas orientações curriculares
para a educação pré-escolar, e que, do meu ponto de vista, estão bem formuladas
e são globalmente boas, na medida em que são apenas uma proposta de trabalho.
Isto na teoria, porque na prática os educadores e educadoras estão a ser pressionados
para cumprirem literalmente as orientações curriculares. Penso que está na hora
das educadoras e educadores assumirem a sua autonomia profissional e não cederem
a pressões sejam elas dos serviços do Estado ou mesmo da comunidade.
Mesmo assim, considero ter sido um passo importante no sentido de conferir maior
visibilidade social à educação de infância e maior dignididade profissional
aos educadores. É preciso eslarecer os encarregados de educação, de uma vez
por todas, de quais são os objectivos da educação pré-escolar e entendê-la como
um nível de educação autónomo que promove o desenvolvimento das crianças. Ao
promover as finalidades, objectivos e metodologias específicas da EPE, os educadores
estão a implementar o princípio da sequencialidade educativa assente numa lógica
curricular de sequencialidade progressiva.
Questiona também a dada altura do seu livro se a construção
das políticas educativas não estará a "legitimar os interesses da esfera produtiva".
Porquê?
Porque considero que no contexto das políticas de educação
e de protecção social à infância os interesses das crianças têm sido preteridos
relativamente aos interesses da família e da esfera económica. E a questão do
prolongamento dos horários é disso um reflexo. Isto porque, ao analisar sociologicamente
as políticas educativas para a infância, tenho constatado que, na maioria dos
casos, os problemas das crianças não são equacionados per si mas são vistos
como problemas das famílias e, portanto, são enquadrados nas políticas para
a família.
Uma questão bastante actual nas novas perspectivas sociológicas da educação
da infância é saber como conciliar as políticas para a família, as políticas
de protecção da infância - que levaram à criação de um conjunto de serviços
extremamente importantes para o bem estar da criança -, com uma nova concepção
de criança que a elege como cidadã e como actor social. A criança influencia
a estrutura familiar e a própria estrutura social, na medida em que ela é também
produtora de sentidos e de deveres. Curiosamente, apesar desta nova concepção,
não se têm ouvido as crianças na formulação das políticas educativas...
O que está a acontecer no terreno, e situando-me em relação à educação pré-escolar
pública, dado que a solidária e privada já dispõem anteriormente deste atendimento,
existe uma desarticulação total entre as diferentes entidades envolvidas, nomeadamente
entre os órgãos de gestão dos jardins de infância, os pais e as autarquias.
Uma desorganização que se reflecte, por exemplo, no facto de, após terminarem
as actividades com a educadora, as crianças serem remetidas para uma sala que
está organizada praticamente nos mesmos moldes do jardim de infância.
Isso porque os funcionários recrutadas pelas autarquias
e pelas instituições privadas e solidárias não dispõem, na maioria dos casos,
de conhecimentos para assegurar actividades lúdicas no período correspondente
à componente social... ou não?
Em termos organizativos, as salas de apoio, vulgo ATL (Actividade
de Tempos Livres), são uma cópia do espaço do jardim de infância, já que as
actividades que as auxiliares de acção educativa desenvolvem com as crianças
são, no fundo, uma continuação daquilo em que elas estiveram envolvidas nas
cinco horas anteriores. E isto não salvaguarda, do meu ponto de vista, os interesses
das crianças. E essa dimensão lúdica é relevante - aliás, a própria Lei Quadro
e todos os despachos subsequentes, chamam a atenção para esse aspecto - e é
aqui que os animadores culturais poderiam ter um papel muito importante a desempenhar,
no sentido de enriquecer este espaço, que poderá, e deverá, ser educativo. No
entanto, e por incrível que pareça, foi um processo em relação ao qual os profissionais
de educação de infância não foram ouvidos.
Aliás, chama a atenção para o facto de nas discussões da
proposta de Lei Quadro a Associação dos Profissionais de Educação para a Infância
não ter sido consultada...
Exactamente. A única associação de carácter nacional existente
neste sector não foi ouvida, o que se reflecte no terreno, onde os educadores
não dão o seu parecer no que respeita, nomeadamente, à organização dos ATL.
E eles teriam concerteza um papel fundamental neste campo porque são técnicos
qualificados.
Subjacente a esta opção está o modelo de organização social e democrática que
temos em Portugal, que é uma democracia representativa e não participativa.
É bom que a Lei Quadro tenha avançado, mas não teve em conta os processos de
socialização dos cidadãos portugueses, educados numa cultura de cumprimento
das normas e não numa cultura da participação.
Esta dimensão é extremamente importante na medida em que a Lei Quadro e os despachos
subsequentes criaram a possibilidade de articulação do jardim de infância público
com a comunidade, mas não tiveram em conta que os cidadãos não estão preparados
para a participação e que os autarcas, muitas vezes com receio de perder o protagonismo,
lideram os processos, não deixando que os profissionais, e os próprios pais,
que são actores importantes, participem desses processos de decisão. E quem
assume a profissão com profissionalismo questiona-se acerca destas e outras
questões.
Como é possível a assumpção desse profissionalismo a que
se refere quando, entre outros constrangimentos, existe um estatuto de Carreira
Docente para o ensino público e um outro para os profissionais dos estabelecimentos
de ensino particular e cooperativo? De acordo com a Lei Quadro, aliás, eles
deveriam convergir progressivamente. Isso está a acontecer?
Não tenho dados bem precisos, já que as minhas representações
cingem-se de modo particular ao distrito de Braga...
Mas diria que essa realidade local poderia ser extrapolada
para a realidade nacional?
Arriscaria dizer que sim. A Lei Quadro, e esse foi um dos
seus pontos significativos, criou condições para que as IPSS pudessem começar
a assumir esse objectivo, aproximando as remunerações, os horários e as condições
de trabalho aos educadores da rede pública.
Porém, há aspectos intrínsecos à própria organização das IPSS - e da minha experiência
tenho percebido que existem duas orientações bem distintas entre a União das
IPSS e a União das Misericórdias - que condicionam a sua actuação. As tabelas
estão acordadas e neste momento aproximam-se e são mesmo idênticas às praticadas
por alguns estabelecimentos do ensino particular e cooperativo - tanto mais
que o Estado já aumentou a prestação por utente, exactamente no sentido de as
instituições poderem realizar-se economicamente - pelo que é exigido que cumpram
com as suas obrigações. Mas a maioria delas não cumpre.
A tutela pedagógica dos estabelecimentos de ensino é exercida
de facto pelo ME?
Sim, quer através da regulamentação organizativa e pedagógica
que foi sendo produzida, quer através de publicações de cariz informativo destinado
aos pais e instituições, quer ainda através dos mecanismos de supervisão e inspecção.
Em 1999 tive conhecimento de uma inspecção conjunta com os inspectores do ME
e dos técnicos superiores de educação do MESS aos jardins de infância das IPSS.
É difícil chegar a todos os estabelecimentos, mas dada a natureza de que se
revestiu - fazer um diagnóstico destas realidades instituicionais - é importante
acelerar este processo.
E as condições infaestruturais, nomeadamente no que respeita
às determinações de espaço e do número de crianças por educador, são cumpridas?
Mais uma vez, a Lei Quadro define muito concretamente as condições
em que estes devem operar. Mas se do ponto de vista de construção da lei ela
é excelente, ao nível da aplicação a história é outra, já que os jardins de
infância públicos têm, em regra, condições inferiores aos das IPSS (neste capítulo,
questiono como é possível as IPSS argumentarem que não nivelam as remunerações
dos educadores por falta de verbas e ao mesmo tempo disponham de instalações
de qualidade). Mas nos últimos anos têm-se verificado alterações significativas,
já que há autarquias que têm apostado em equipamentos e materiais de qualidade
Mas se estas condições ainda vão sendo respeitadas, ao mesmo tempo existem outras
que, sendo tanto ou mais importantes para se atingir aquilo que parece dominar
a preocupação dos políticos - a qualidade na educação -, nomeadamente no que
respeita ao número de utentes por sala, são muitas vezes esquecidas.
"Observamos uma continuação da orientação politica neo-liberal
iniciada na fase anterior com discursos e práticas que assentam sobretudo na
valorização do Estado regulador", diz a certa altura do seu livro, o que a leva
a afirmar que estaremos de regresso a uma política de "quase-mercado educacional".
É assim?
Exactamente. Uma das hipóteses que trabalho actualmente debruça-se
sobre a potencialidade de as IPSS e os jardins de infância públicos, nesta matéria
do prolongamento de horários, desenvolverem programas de carácter mais emancipatório,
mais próximas da comunidade. E neste contexto tenho um dilema que atravessa
toda a minha reflexão: sendo uma adepta da regionalização política - assumo-o
- receio, ao mesmo tempo, a atribuição de competências às autarquias (que do
ponto de vista teórico é muito importante, na medida em que aproxima as políticas
das comunidades, mas que pode trazer consigo o reverso da medalha). O projecto
de transferência de competências para as autarquias é interessante, tem potencialidades,
mas deve haver mudanças substantivas quer na forma de estar dos cidadãos quer
das instituições e das suas práticas organizacionais.
Que recomendações deixa no sentido de melhorar a organização
do trabalho e da qualidade de atendimento na educação pré-escolar?
É bom que se diga nas IPSS que, pelo menos nesta fase - não
quer dizer que no futuro elas não consigam desenvolver plenamente as suas potencialidades
-, as suas práticas organizacionais e educativas dependem muito dos seus órgãos
dirigentes. Sabemos que nos últimos anos o MESS, até mesmo antes da Lei Quadro,
tem elevado as exigências ao nível da especialização dos recursos humanos. Mas,
na minha opinião, assiste-se a uma crescente desprofissionalização dos órgãos
sociais que se reflete na falta de autonomia pedagógica dos educadores nas IPSS.
E este aspecto é extremamente importante no seio da educação de infância, porque
a lógica pedagógica deve sobrepor-se à lógica técnico-administrativa, e aqui
o papel dos profissionais é importante.
Nas IPSS, em regra, os corpos dirigentes não têm conhecimento do que é o trabalho
pedagógico com crianças em idade pré-escolar, orientando-se sobretudo pela lógica
administrativa e burocrática, e muitas vezes pelas regras de sobrevivência económica.
E enquanto os profissionais não ganharem um espaço de afirmação profissional
- e este é um ponto chave -, as instituições não começarem a assumirem que os
profissionais têm um papel fundamental na acção educativa e a comunidade não
fôr mais participativa e atenta às realidades, o cenário eventualmente interessante
proporcionado pela Lei Quadro ficará aquém das suas ambições.
Mas ainda temos muito que caminhar a este nível e, nesse sentido, penso que
se deve, se assim se pode dizer, repolitizar os agentes e as instituições. A
repolitização da sociedade civil, dos educadores e das educadoras é fundamental,
porque quem consegue pôr a comunidade a pensar sobre estas questões consegue
obter o seu apoio.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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