Instalado provisoriamente na única pensão da vila, da varanda do meu
quarto podia estender o meu olhar sobre quase toda a rua principal da zona comercial
de Mandlakazi. A curiosidade cruzava-se com o espanto: as casas com o ventre
ao léu alternavam, de um modo quase ritmado, com as lojas em funcionamento,
melhor dito, com as cantinas como aqui são chamadas, marcando a paisagem urbana.
Adivinhando as razões desta nudez ferida, ela foi um dos primeiros temas de
conversa com os meus informantes. Com a emoção sofrida da experiência vivida,
eles desfiaram as histórias da guerra civil, do medo da morte, dos familiares
e amigos caídos, das incontáveis noites passadas no mato, muitas vezes refugiados
na lagoa, molhados para manter acesa a chama da vida.
Cunhado para sempre na memória daqueles que o viveram, fazendo parte da memória
colectiva de Mandlakazi, o massacre de Agosto de 87 - mais de 50 mortos, homens,
mulheres e crianças hoje enterrados numa vala comum junto ao hospital local
- é um paradigma do horror praticado nestas paragens da periferia pelos "combatentes
da liberdade". Criatura saída do bojo do apartheid, peça fundamental na política
reaganiana de contenção da "ameaça comunista" na África Austral, a Renamo assentava
a sua estratégia na prática quotidiana do terror sobre as populações civis e
na destruição das estruturas económicas. A minagem indiscriminada dos caminhos
e dos terrenos agrícolas, os ataques recorrentes às cantinas, em especial as
do mato, os assaltos nas estradas e nas aldeias, a pilhagem do gado, não raro
o seu extermínio, obrigaram a população a fugir, deixando para trás as suas
"machambas", os terrenos onde faziam as culturas agrícolas que lhes garantiam
o sustento. O resultado é conhecido de todos: desarticulação da economia, fome,
doença, sofrimento e morte.
Perseguido pela imagens e as vozes da pequena vila de Gaza, os ataques terroristas
às torres do WTC e ao Pentágono, também aqui amplamente cobertos e discutidos,
desassossegaram-me: Porquê este ódio aos Estados Unidos?
Residindo num país onde a embaixada americana tomou para si, através do bloqueio
permanente da circulação de viaturas, a rua defronte do seu edifício - expressão
do seu poder imperial, esta usurpação destapa a consciência do fel que lhe é
votado -, a leitura da imprensa moçambicana e os diálogos com alguns amigos
deste lado do mundo deram vida ao "efeito de boomerang", como lhe chamou o Le
Monde Diplomatique, ou, se preferirmos, ao portuguesíssimo "cá se fazem
cá se pagam".
Do lado de lá, o cowboy do Texas afirmou prontamente que quem não está com os
americanos, entenda-se, com a administração americana, está com os terroristas.
Lamento, Sr. Bush, mas não concordo. Como se pode estar com o seu estado quando
se é resolutamente contra o terrorismo, independentemente das circunstância
em que ele se verifica, de quem o promove e das razões que o sustentam? Como
se pode estar com um estado, o seu, que, à bomba e à bala, promove, organiza
e apoia golpes, assassina líderes políticos, destabiliza (e liquida) regimes
incómodos? Metendo a mão no baú da memória, não posso deixar de trazer ao texto,
tirando de um rol sem fim, o Chile de Allende, a Nicarágua de Ortega, o Congo
de Lumumba e, já agora, o Moçambique de Samora.
Vivendo o impensável, o terror vindo de fora na sua própria casa, para Bush
e para os que, à sua volta, lhe ditam a política e os discursos, é tempo de
ajustar as contas com o bin Laden e os taliban, elevados à condição de inimigos
satânicos dos Estados Unidos. Em termos estratégicos, trata-se de uma oportunidade
excepcional para a consolidação da hegemonia dos Estados Unidos, estado gendarme
do neo-liberalismo doravante globalizado e da hiper-burguesia transnacional,
por via do reforço do musculado aparelho militar e do alargamento da sua presença
a novas áreas do globo. Garantido o apoio do, sempre fiel, amigo inglês, o esforço
diplomático americano na Europa está orientado para, como justamente observou
o diário italiano Il Manifesto, a partilha das responsabilidades e, sobretudo,
dos riscos.
A resposta está em curso. A deles e a nossa, a dos que, não aceitando nem as
responsabilidades nem os riscos, exigem uma ordem mundial baseada no primado
da paz e da justiça e não na lei do mais forte, à maneira do velho oeste. Em
Washington dezenas de milhares de manifestantes deram conteúdo concreto à contestação.
Na Europa, mormente em Itália, as acções colectivas engrossam este caudal iniciado
do outro lado do Atlântico. Acredito que também na América Latina, na Ásia e,
quem sabe, em Moçambique, os homens e as mulheres de boa vontade saberão dizer
não a mais uma aventura guerreira que, nada resolvendo, apenas serve para entreter
os generais e engrossar os lucros das pudicamente designadas indústrias de defesa.
Antes que seja demasiado tarde, é tempo de ajudar a administração americana
a deixar essa estranha e maléfica obsessão de se contemplar ao espelho.
Fernando Bessa Ribeiro
UTAD
fbessa@utad.pt
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