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A impossível subordinação

Para Paula Iturra van Emden, este debate que me ensinou a sentir e não apenas a pensar


1. A ideia

É quase evidente, é quase uma verdade que grita, o facto dos pequenos serem educados pelos adultos como se pertencessem a eles, como se fossem da sua propriedade, até uma coisa, diria eu. Uma coisa que deve ser estruturada conforme as formas de pensar e agir dos adultos. Um dever, o estruturar, o comportamento infantil à maneira que o adulto entende o mundo. Tenho observado ao longo dos meus anos de trabalho de campo, o facto da subordinação, por sim ou por não, dos mais novos aos adultos, no lar ou nas instituições às quais são enviados para aprenderem a teoria da cultura do seu grupo social. Uma subordinação definida por mim já há alguns anos, como a sujeição sem alternativas ao que o adulto pretende retirar do mais novo. Até ao ponto de existirem adultos que escrevem o que deve ser feito para organizar o processo de subordinação que estruture a personalidade, como deve ser feito esse processo e quando deve acontecer. Tenho lido no Catecismo de Igreja Romana, no Al-Corão dos muçulmanos, no Código de Direito Canónico da dita Igreja Romana, que a infância é todo o ser humano que nasce, cresce e começa a entender o mundo aos sete anos (Cânon 95 do dito Código, transferido para o Direito Civil no Século XIX). Como se a aritmética fosse parte da reprodução da infância. Como se a contabilidade dos dias, meses e anos, fossem parte da educação ou um objectivo definido para moldar as emoções e a inteligência dos mais novos. O que não tenho observado com frequência, é o entendimento do adulto de estar a orientar a geração seguinte pelos textos acima referidos, que esse adulto parece não conhecer; ou, se conhece, quer virar as costas a esse saber. Saber que impôs, na infância do adulto de hoje, um comportamento pesado e duro de hierarquias a serem respeitadas por sim ou por não, sem explicações. Porque estava essa hierarquia dentro da interacção social, do convívio, do seu grupo, dentro do seu contexto histórico. Penso que há uma contradição permanente entre o que adulto sabe desde a sua infância e o que deve fazer na época da sua suposta maturidade. Maturidade que defino como o entendimento das alternativas económicas perante recursos que dão ou não mais valia para lucrar. Contradição que sintetizo assim: o adulto em criança, aprende na base do ensino da teoria religiosa do seu grupo social que deve ignorar a seguir no intuito de concorrer com o seu próximo. Esta contradição é entre as emoções solidárias e os deveres concorrenciais que permite um conforto na corrida entre os indivíduos do seu grupo. Um conforto definido como ser o melhor e mais habilitado, com maiores posses e alternativas do que o seu próximo. A contradição da qual parte a transferência de saberes, é entre amar e bater, comportamento esperado dos mais velhos. Mas, ai da criança que bata para ganhar! É punida. O adulto é definido como um ser concorrencial que manipula recursos; a criança é definida como a entidade aritmética que deve fazer o que o seu adulto diz.

2. A contradição

Definida assim, penso que devemos avançar para a base do comportamento. Aí há também duas alternativas: o ensino da teoria religiosa na catequese dos cristãos ou nos mandala ou escolas corânicas dos muçulmanos. As culturas cristãs, especialmente a Romana, dedica parte da actividade dos adultos a transferir a ideia da igualdade entre todos e de amor ao outro, definido como próximo ou irmão filho de uma mesma divindade criadora do ser. As escolas muçulmanas orientam para a aprendizagem decorada do texto sagrado, conforme o qual devem sempre agir de forma homogénea durante a sua vida toda. Para todas as crianças, o caminho fica traçado e não pode nem deve desviar-se do mesmo sob pena de exclusão do grupo social. Ainda que essa ideia seja manipulada mais tarde para obter os objectivos de vida que a sociedade globalizada, manda: acumular bens de forma individual e em luta aberta com os outros e assim se ter uma vida sossegada e tenra...para si próprio. E, eventualmente, tenra para os seus ou com os seus. As crianças são abafadas, assustadas por esta contradição. É ensinado o amor, mas observa o adulto debater, bater, concorrer sem nenhuma gentileza carinhosa com o próximo durante os seus dias aritméticos da infância. Eis porque os pequenos se debatem entre eles qual é o pai mais forte do que o outro, um debate sempre presente, como tenho observado no meu trabalho de campo. O adulto não entra no mundo da criança para o entender e ensinar a perceber que há outros seres humanos que merecem a simpatia e a gentileza que os mais novos são capazes de dar. A criança observa a luta dos adultos sem ouvir da parte deles uma explicação dos motivos dessa luta. A criança precisa dessa explicação para se estruturar como ser humano coerente e lutador na sua vida adulta. E não apenas, na sua vida infantil. A agressividade é um sentimento existente na raça humana, necessária de ser entendida pelos pequenos para aprenderem a usar as suas próprias armas intelectuais e físicas quando for preciso defender a sua auto estima, a sua maneira de ser, a sua família. O adulto tem o dever de entrar no mundo do mais pequeno para, desde os seus conceitos ainda não desenvolvidos, esse novo ser saiba que o mundo não é uma canto de paz e harmonia. Dever, digo, por causa do grandalhão estar a par da heterogénea forma da interacção social. Dever, digo, porque esse adulto é um experto ou um perito nos debates, nas amizades e nas zangas dos seus pares. A criança luta por emotividade, o adulto luta com racionalidade. Racionalidade a ser transferida embrulhada na emotividade da época aritmética que define a infância. Infância que aceita e acolhe o que o adulto faz se este, com calma e carinho, sabe fazer avançar para dentro dos seus interesses, a geração dos pequenos, ou a esse pequeno que vive em casa com adultos que até aparecem gastos do trabalho do dia e desejam silêncio. Silêncio que podem conseguir apenas se o seu interesse pessoal é considerado e, a partir desse interesse, ficar abstraído no seu próprio objectivo de vida. Se, com a criança, se faz um ritual para estruturar o seu tempo, com o saber permanente do mais novo de que é assim, para ser feito, enquanto sente paz e sossego por causa do ritual ser respeitado dia após dia. O que estrutura a criança, é a reiteração de uma forma de vida apoiada pelo adulto capaz de dizer onde é que está e para onde é que vai e por quanto tempo. O imaginário infantil desenvolve-se enquanto fica calmo dentro do seu mundo pessoal, por causa de haver calma dentro do seu lar. Calma possível enquanto o centro das atenções é esse ser e não a doença do adulto, a raiva entre esses adultos, a luta entre eles, ou a distância que ganham da geração que se educa ao observar aos adultos e entender que o mundo não está composto por seres humanos iguais, bem como pela diferença entre todos eles, ou em saber, ou comportamento, ou posses.

3. Saber religioso

A religião, seja ela qual for, é uma teoria. É a teoria da cultura ou a forma de materializar as ideias que surgem da vida em sociedade. O comportamento naturalmente agressivo dos seres humanos que batem para ganhar, está regulamentado por eles próprios em teses de subordinação sucessiva. A primeira subordinação é a Divindade que fez o mundo e deu a vida. A seguir, nos ministros que gerem essas teses e definem uma cadeia de deveres entre os seres humanos que, entre judeus e cristãos, são denominados Mandamentos, ao todo, Dez. E entre muçulmanos, os numerosos artigos do livro do Profeta Mohamed. Ambos regulamentam o convívio, mandam respeitar as relações contraídas, obrigam a descansar, definem a propriedade da terra e os seus recursos, ditam as leis do comércio ou troca entre pessoas, avaliam igualdades ou desigualdades entre pessoas e bens. Às vezes, passando os bens em frente das pessoas, especialmente se esses bens são básicos para reproduzir o grupo. Entre os cristãos romanos, todas estas definições estão contidas no supra referido Catecismo. Catecismo que contém 2865 artigos espalhados em 603 páginas. Trata, principalmente, de incutir a ideia da existência de uma divindade que garante a relação social solidária entre pessoas de diferente estrato social e de defender-se de qualquer outra ideia que não seja a que esse livro define. Não é por acaso que delimita e exclui pensamentos denominados totalitários, como as ideias comunistas, socialistas e algumas das denominadas capitalistas por serem ateias, é dizer, por definirem um agir social que não considera a Divindade como centro e motor de toda acção, na base de uma pretendida defessa da dignidade humana e de um pretendido bem comum que considera a greve como uma actividade pecaminosa pela rebeldia que implica à autoridade patronal o facto dos trabalhadores não concordarem com os proprietários naturais dos bens. Naturais, por adquirição, herança, criação ou produção dos mesmos. Estas ideias são, saibam ou não, praticadas pelas pessoas, apesar de se definirem como entidades humanas desligadas da divindade e das práticas rituais. Sem darem por isso, as pessoas da cultura Ocidental vivem o que o Catecismo diz. Os muçulmanos são mais explícitos e agem pelo livro, citado para todos os seus actos e trocas. O respeito entre muçulmanos nasce do acreditar que cada indivíduo está a agir dentro de um saber compartilhado. Os grupos sociais cristãos romanos, normalmente viram as costas ao saber criado no Ocidente, a letra escrita desse saber que acabam por conhecer na base de formas orais de entender os Mandamentos dedilhados nos artigos do livro que define o convívio.
Este desdenhar a base do saber social, acaba por ser essa contradição incutida no comportamento das pessoas. Se há monogamia, se há respeito pelos bens do outro, se há dias de repouso, se existe distância entre o meu e o teu -falta de cobiça -, se há comportamento ritual, se as pessoas tentam entender a seu trabalho e, para além do mais, trabalham pelo dinheiro ou pelo prazer de trabalhar, a raiz destas ideias reside neste livro sagrado dos ocidentais que acabam por desconhecer e agirem, às tantas, contra si próprios ao procurarem lazer e lucro de forma simples, directa e fácil. Sem jamais reconhecer que o seu saber, o seu entender, nasce da ideia bíblica explicada catequese ou, simplesmente, agidas no quotidiano. A contradição na transferência de ideias entre adulto e criança nasce do facto de desconhecer o fundamentalismo Ocidental que aceita ou rejeita seres humanos, conforme as ideias que eles possam ter. Até ao ponto de se dizer às tantas: "tu não acreditas em Deus, mas Ele acredita em ti, não tens alternativa". É, como de facto, começa o texto que comento: "O homem é capaz de Deus". À partida, é uma ideia contra a qual muitos indivíduos que procuram maximizar os seus bens para serem ricos, rejeitam, mas que acabam por aceitar por causa de se estar perante um texto que delimita o afazer social para a sua conveniência, por causa de estruturar o processo de conduta social. O Ocidente passa a ser um povo fundamentalista que acaba por não conhecer a base escrita do seu comportamento, ainda que esse comportamento exista nas leis civis e de comércio que orientam o saber social. Uma forma triste de confundir um sentimento denominado "fé" e "igreja", com um saber que define. E que é transferido para os mais novos. Mais novos que acabam por não entenderem essa contradição fatal dos seus adultos: "Queira Deus...mas tu, deixa-me em paz que estou cansado"

O leitor sabe e tem a palavra. A minha, vai ficando por estas linhas, sem deixar de dizer que, nos dias em que vivemos, fala-se de ataques terroristas de fundamentalistas islâmicos sem definir o fundamentalismo terrorista dos que possuem a tecnologia que mata e escraviza. Eis porque uma subordinação impossível à da criança ao adulto. Procurada racionalmente pelo mais velho, desentendida emotivamente pelo novo ser em formação contraditória.

Raúl Iturra
ISCTE, Lisboa
lautaro@mail.telepac.pt

  
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Edição:

N.º 107
Ano 10, Novembro 2001

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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