Em defesa da autoridade e da liberdade de escolha - é a tese que gostaria
de defender a propósito do recente debate parlamentar sobre violência e indisciplina
nas escolas. À primeira vista a tese parecerá bizarra. Entre nós, e em regra
geral na Europa continental, é costume pensar que os dois termos são antinómicos:
quem defende a autoridade deve ser contra a liberdade de escolha e quem é
partidário desta será contra a autoridade.
Gostaria de recusar tal oposição: sou partidário da autoridade e da escolha
livre. Poderia citar em meu favor uma longa lista de autores distintos: Jonh
Locke, David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, James Madison, Alexis de Tocqueville,
Lord Acton e tantos outros. Mas prefiro citar um professor português do ensino
secundário, João Rebelo da Silva, que não conheço pessoalmente, e que declarou
o seguinte ao jornal "Público" da passada segunda-feira: "Vivemos uma ditadura
das Ciências da Educação, quase tudo é proibido porque não é pedagógico: não
se passa trabalhos de casa, não se pode mandar um berro. Mas quando um aluno
diz 'não faço porque não quero', ou insulta, os pedagogos dizem que a culpa
não é dos meninos, mas das dificuldades lá em casa. A falta de autoridade
é um problema, os docentes sentem-se revoltados".
Eis, numa casca de noz, o diagnóstico mais certeiro sobre os problemas das
nossas escolas e a sua origem.
A indisciplina e a violência nas escolas são obviamente produto de muitos
factores. Mas, dentro das escolas, elas são sobretudo produto de rebuscadas
teorias educativas - as tais "Ciências da Educação" - que têm como objectivo
central demolir toda e qualquer forma de autoridade que não a delas próprias:
a autoridade dos pais, a dos professores, a da polícia, a das leis, e por
aí adiante (...).
(João Carlos Espada, Autoridade e Liberdade de Escolha, Expresso,
27.01.01)
João Carlos Espada, no "Expresso" de 27.01.01, atribui às Ciências da Educação
o objectivo de pretender "demolir toda e qualquer forma de autoridade que não
as delas próprias", afirmação que me parece, no mínimo, leviana, tendo em conta
que, hoje, para se escrever sobre escolas não o podemos fazer, apenas, pelo
que lemos e ouvimos sobre as vivências experimentadas por outros. Importa também
ser modesto e compreender que, tal como um dia Eduardo Prado Coelho o escreveu,
a pior ignorância é aquela que ignora aquilo que ignora. Seria interessante,
por isso, que J. C. E. pudesse ler, então, Jonh Dewey, Maria Montessori, Adolfo
Lima Coelho, Antonin Makarenko, Celestin Freinet, Rui Grácio, Sérgio Niza ou
Phillipe Meirieu e que, posteriormente, nos mostrasse, um texto que seja, onde
qualquer um desses autores defenda, de forma explícita ou implícita, a permissividade
ou a falta de exigência académica como propriedades dos discursos pedagógicos
inovadores. Por mais que se procure, esse texto não existe. O que se poderá
encontrar, pelo contrário, é um conjunto de reflexões sobre a Escola que demonstram
o quanto é educacionalmente decisivo que os alunos possam envolver-se, nas suas
salas de aula, em actividades desafiantes e significativas. Talvez, então, se
possa compreender como esses pedagogos estão muito longe de se afirmar como
arautos do laxismo e da bandalheira, valorizando, pelo contrário, pelos seus
efeitos educativos, quer o esforço consequente de uma criança face ao conjunto
das tarefas escolares quer o subsequente processo de reflexão da parte dos adultos,
a partir do qual se desenham as propostas contidas nessas mesmas tarefas. Neste
caso poder-se-
-ia compreender, igualmente, como um tal esforço depende do modo como os alunos
são capazes de compreender o sentido das actividades que realizam nas suas escolas,
se necessário com o apoio explícito e intencional dos seus professores ou até
de outros colegas seus. Se J.C.E. lesse alguns dos textos, entre outros, daqueles
autores, de forma a construir uma opinião minimamente fundamentada sobre os
discursos pedagógicos inovadores, compreenderia que o que se busca é o estabelecimento
de uma relação profícua e criativa entre o património cultural a apreender e
os interesses dos alunos, entre escola de massas e qualidade académica, entre
o acto de ensinar e o acto de aprender, entre conteúdos e processos ou entre
ser professor e ser aluno.
Chega, por isso, de abordar as intervenções educativas que têm lugar nas nossas
escolas a partir de discursos onde se mistura, em doses mais ou menos equivalentes,
a má-língua ou a falta de seriedade e de rigor que, muitas vezes, não servem
senão para tentar ocultar a ignorância, a indiferença profissional, a incompetência
pedagógica, a falta de coragem cívica ou os interesses corporativos de uns quantos.
É, aliás, interessante verificar como aqueles que mais reivindicam a necessidade
das escolas se assumirem como espaços de exigência académica e da afirmação
do mérito individual de uns quantos, o façam através de argumentos tão indigentes
e tão pouco meritórios como aquele que J.C.E. subscreveu.
Seria, afinal, interessante que pudéssemos reconhecer que a origem dos males
que afligem as nossas escolas merece uma discussão mais séria do que aquela
que J.C.E. estimulou. Do mesmo que seria fundamental que reconhecêssemos que
este país pouco beneficiou, no passado, com a Escola que tivemos. Embora não
perfilhemos de um discurso optimista sobre o estado da educação escolar em Portugal,
somos capazes, apesar disso, de facilmente estabelecer um roteiro de escolas
e salas de aula onde o poder dos professores não se exerce de forma arbitrária,
as tarefas são exigentes e o ambiente de trabalho é rigoroso. Atitude que normalmente
se explica pelo facto de, em primeiro lugar, esses professores saberem, tanto
quanto possível, porque propõem o que propõem, como o propõem e para quem o
propõem e, em segundo lugar, pelo facto desses mesmos professores saberem que
é através da valorização do seu papel como interlocutores qualificados no âmbito
do processo de aprendizagem dos seus alunos que o seu contributo como educadores
se constrói.
Ética e rigor são as palavras mais adequadas que neste momento encontramos para
definir a sua intervenção e, deste modo, confirmar a sua existência.
Ariana Cosme e Rui Trindade
Universidade do Porto
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