Como é costume, poderemos dar-lhe um nome e o nome poderá ser Pedro.
Finalista de um curso de formação de professores, personagem de ficção ou actor
de um drama real, o Pedro desta história tinha consciência de que, ressalvado
o diploma que lhe dava acesso ao exercício de uma profissão, tinha desperdiçado
quatro preciosos anos a copiar acetatos e a memorizar inutilidades que, depois
de debitadas num exame, rapidamente esquecia: "Chegou o fim da tormenta de
quatro anos, em especial o último. Incompreensível estupidificação! Somos obrigados
a saber tudo o que nos querem ensinar sobre o segundo ciclo do Básico num só
ano. Como é obvio, o grau de exigência é mediado pela consciência de quem ensina,
que tenta, num ano reduzido a apenas alguns meses, dotar os seus alunos de todas
as capacidades possíveis para enfrentar... o quê? Serão os professores capazes
de abandonar as sebentas e um palavreado com sabor a bolor? Quantas escolas
inovadoras, quantos professores inovadores tivemos oportunidade de conhecer?
O que mais me perturbou o espírito, nestes quatro anos, foi a repetição levada
ao exagero de acetatos de livros. Dei comigo a pensar "porque teremos nós de
copiar fotocópias de livros, quando poderíamos simplesmente ler os livros? Certamente,
essa leitura nos diria mais da teoria do que as aulas papagueadas."
Entre a desilusão da (de)formação e a angústia da proximidade do exercício
de uma docência para que não fora minimamente preparado, o Pedro apercebe-se
de outra dura realidade: a de que os seus colegas de curso (futuros professores)
são considerados pelos seus mestres como potenciais trapaceiros. Vejamos.
"Quem copia nos testes, quem dá graxa aos docentes, ou quem copia os trabalhos
de anos anteriores, saca uma média de curso que lhe permitirá um emprego como
professor... e perto de casa. Num destes dias, passei por uma sala. Vi alunos
serem obrigados a prostrar os seus pertences no chão, debaixo do quadro. Ao
que parece, porque "poderiam copiar no teste que se iria realizar". Serão estes
alunos - considerados desonestos pelos seus professores - os professores do
amanhã?"
Porque (para seu infortúnio) foi capaz de não ceder à tentação de andar
de cócoras ou de rastejar para sobreviver, o Pedro lamenta: "Para meu infortúnio,
rendi-me a outras causas que não estas. Concluí o meu curso com uma média baixa
e a consciência tranquila, num equilíbrio ténue entre o desconforto da perspectiva
de meses de desemprego e a satisfação de ter ido mais além."
E admite contenções e fraquezas: "E a auto-censura que me impus! Por
vezes, tive de me baixar ao nível rasteiro adoptado pela maioria dos meus colegas,
com o único objectivo de chegar ao fim do curso. Se não fosse assim, não poderia
estar a escrever estas linhas. Da nota final dependia a minha sobrevivência.
Malditas notas, que nem sequer são musicais!"
O Pedro elegeu-me como confidente. Não me atreverei a contar-vos tudo o que
me disse. Mas, juntando um último alinhavo, não resisto a transcrever um registo
de impressões de uma das suas traumáticas experiências de estágio: "A estória
que gostaria de partilhar é, como tantas outras, passada numa caixa de betão
conhecida por escola, por sinal, considerada "uma das melhores do país". Possuidor
de um traço que poucos têm a sorte de possuir fazia antever um futuro promissor
àquele aluno. Mas, os números, o diabo dos números!... O "Carlos" manifestava
indiferença face aos números. Coisa grave!... Remetido à última carteira da
sala, continuava a desenhar, recusando tentar, sequer, compreender a importância
dos números.
Com a Páscoa à porta, é chegada a altura das notas quase finais: "as notas que
damos no segundo período são praticamente as mesmas do último", diziam os nossos
professores. A angústia de "Carlos" era disfarçado por um sorriso tímido, que
fazia dele "um dos alunos com melhor comportamento da turma". O segundo período
até tinha corrido bem. Com os estagiários por perto, vieram as positivas e um
maior à-vontade do "Carlos". Com o segundo período veio também uma matéria diferente,
algo de que o "Carlos" gostava e fazia tão bem ou melhor que os restantes elementos
da turma: geometria. Os testes foram animadores. Mas o dia de "dar as notas"
foi de imensa tristeza para o "Carlos" (que "já estava habituado") e para nós,
estagiários.
A memória de "um 1 bem assente na pauta" povoou-me os sonhos de noites mal
passadas. Afinal, eu era só um estagiário. Senão!... Contudo, esta minha opção
arrastou consigo um sentimento de impotência que ainda não me abandonou. Quando
da última vez que falei com "Carlos", o fantasma da reprovação levava-o a considerar
a hipótese do abandono da escola..."
Este Pedro apercebeu-se da tragédia. Mas quantos milhares de Pedros passam insensíveis
ao largo dos pequenos dramas que compõem o imenso drama de uma carreira feita
de indiferença? Quantos milhares de Pedros morrem, profissionalmente, aos vinte
e cinco e apenas são enterrados quando chegam aos cinquenta e cinco?
Foram muitos os novos professores a quem a vida roubou os sonhos. Foram muitos
mais aqueles que, desfeito o idílio e o enamoramento dos inícios, desertaram.
Se alguém crê que eu pretendo afirmar a falência da formação inicial, se houver
quem pense que eu insinuo vivermos uma tragédia criminosamente silenciada, engana-se.
Eu não insinuo, eu afirmo.
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
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