Nova realidade, nova legalidade: o que se disse na imprensa
A próxima guerra
"É uma guerra estranha a que se prepara, na qual o presidente dos Estados
Unidos, este e os que venham, têm carta branca para atacar quem lhes pareça
oportuno, quando lhes pareça oportuno e ao longo das próximas décadas. Ou reinventamos
a doutrina da Guerra Justa, ou o ataque que pretende levar a cabo os Estados
Unidos contra o Afeganistão não tem justificação moral possível. É uma expedição
de castigo e vingança. Para evitar esta guerra não se esgotaram, nem pouco mais
ou menos, os recursos diplomáticos, nem é, portanto, o ataque o último recurso
defensivo. Ambas são condições sine qua non para justificar moralmente uma acção
bélica.
(...) Tampouco parece claro que vá haver proporção no uso da força militar (...)
Nem é seguro que haja probabilidades reais de ganhar semelhante guerra. É significativo
o lapso freudiano de Bush citado ontem [5 de Outubro] na imprensa americana.
Num [seu] discurso, aparentemente sem ter consciência do que dizia, referindo-se
à guerra em preparação, insistiu: "Não tenho dúvida nenhuma, absolutamente nenhuma
dúvida, de que vamos fracassar".(...)"
Juan A. Herrero Brasas
El Mundo, 06.10.01
Os apocalípticos
"Toda a guerra, com a dimensão da presente, gera no mundo inteiro grupos
de opinião e sectores clarividentes que nunca acertam. (...) Em Espanha, concretamente,
em seguida dividimo-nos em "aliadofilos" e "germanófilos", ou em ianques e talibãs,
em orientalistas e ocidentalistas, em madrilistas e atléticos. Agora temos a
imensa minoria dos apocalípticos. (...) O apocalíptico, sendo um tipo universal,
é também um personagem muito espanhola. Gosta de exagerar as coisas e pôr-se
à moda. Maneja grandes superfícies - Ásia, África, o mundo árabe - como se estivesse
a dar cartas de um baralho e tem tudo muito claro. Explica a guerra melhor que
Clausewitz e explica a paz melhor que Gandhi. (...) O apocalíptico não leu o
Apocalipse (...) e não sabe que as guerras são os vulcões da História. De vez
em quando soltam um pouco de fogo e destruição, e, quando julgam que já cumpriram
a sua função, apagam-se até à próxima.(...)"
Francisco Umbral
El Mundo, 22.10.01
Definir vitória
Clausewitz ensinou-nos que em qualquer guerra, seja total ou limitada, mesmo
em toda a batalha, há dois objectivos: um estratégico ou militar (zweck) e outro
político (ziel). Pode perder-se militarmente e ganhar-se em termos políticos.
(...)
Mas em Washington não se põem de acordo sobre o que deve ser uma vitória. O
objectivo estratégico parecia claro: destruir as redes e os meios da "Al Qaeda"
e o seu apoio logístico e político no Afeganistão. O objectivo político é substituir
este regime, ainda que Powell tenha já dado a entender que no futuro governo
provisório no Afeganistão entrarão também talibãs moderados, uma maneira de
tranquilizar o Paquistão face ao peso que ganhou a Aliança do Norte (...)
Mas (se por esta ou outra razão) o resultado desta guerra (...) vier reforçar
o peso (e uso) político da religião que é o fundamentalismo, nesta caso islâmico,
e que promova o crescimento do ódio e surgindo outras redes e grupos terroristas,
a vitória será de pirro. A verdadeira vitória consistiria em chegar a uma situação
que favoreça os muçulmanos moderados, o que passa por resolver o conflito israelo-palestino.
(...) mau seria que, para ganhar a guerra contra o terrorismo global, em nome
das nossas liberdades e forma de vida, acabasse-mos nós próprios com essas liberdades.
Essa seria uma vitória do terrorismo.
No fim, a vitória deve conduzir a um mundo mais seguro e mais livre. Não o será
se não for mais justo e mais tolerante. Mas isso já não é ganhar a guerra. É
construir a paz."
Andrés Ortega
El País, 22.10.01
As armas e as contradições
"A organização terrorista de Osama Bin Laden, Al Qaeda, abasteceu-se nos Estados
Unidos de espingardas "sniper" (de franco-atiradores) de calibre 50 capazes
de derrubar aviões, penetrar em "bunkeres" e centrais nucleares ou converter
plantas químicas em infernos tóxicos de destruição massiva, segundo um relatório
dirigido pelo Congresso à Casa Branca ao qual teve acesso este jornal. O governo
dos Estados Unidos não sabe quantas unidades das "Barrett M81-A1 e 82-A1" com
projecteis incendiários estão nas mãos dos terroristas, dentro ou for a do país,
porque a venda dessas armas é livre nas espingardarias dos Estados Unidos e
qualquer pessoa as pode comprar com garantia de anonimato, como confessou te-lo
feito um agente de Bin Laden agora preso em Nova Iorque, de nome Essam al Ridi.
(...)
A "M81-A1" foi a arma que usaram os "marines" na Guerra do Golfo para neutralizar
veículos blindados iraquianos disparando a uma distância de quilómetro e meio
- a "M81-A1 e a 82-A1 têm um alcance até dois quilómetros e, com munição incendiária,
podem perfurar metal até 10 centímetros - . Desde então as exportações dessas
armas multiplicaram-se exponencialmente e a sua venda proliferou entre a população
dos Estados Unidos de tal modo que surgiram outras 14 fábricas especializadas
neste tipo de arma. Os números oficiais disponíveis sobre exportação não esclarecem
sobre o número existente de "snipers" calibre 50, mas o total de armas exportadas
em 1999 foi de 65.669."
Rosa Towsend / Washington
El País, 23.10.01
O medo
"O medo faz parte da condição humana e inclusivamente diagnosticou-se que
toda a civilização é produto de uma larga luta contra o medo. Os animais têm
medo de ser devorados mas o ser humano multiplica os motivos do temor, complica
as ameaças e fantasia os perigos. (...) Desde a Antiguidade até há uns dois
séculos o discurso literário ou plástico apoiou a valentia como eixo da conduta
social. Uma sociedade sem valentes seria uma sociedade impedida de cumprir o
seu destino e propensa à desagregação, ou à regressão.
Nos nossos dias, não obstante, não é vergonha sentir medo nem tampouco manifestá-lo.
A ideia de que o temor correspondia aos cobardes, os débeis ou as mulheres,
foi substituída pela ideia do terror que se opõe abjectamente à democracia,
ao humanismo e à civilização. Ser um indivíduo civilizado implica viver consciente
dos múltiplos perigos e num estado de alarme geral. As tecnologias de defesa
e vigilância, o desenvolvimento das polícias privadas, as urbanizações fortificadas,
as câmaras de vídeo distribuídas pela cidade, a medicina preventiva, são expressão
de um medo plasmado na vida quotidiana real. Não é, portanto, um medo gerado
pela ignorância ou a "perturbação dos sentidos" mas um produto da informação
e da transparência. (...) O medo é uma paixão livre e admissível mas o perigo
parece um risco primitivo, algo cada vez menos tolerável no desenvolvimento
de qualquer civilização. (...)
Vicente Verdú
El País, 25.10.01
Velhas divisões
"(...) considero-me um reformista radical, defensor da democracia e desconfio
da irracionalidade utópica; mas não me deixo embalar pelo engodo ideológico
duma "sociedade aberta" cuja tendência é para fechar a porta a cada vez mais
gente. (...) Suspeito que José Manuel Fernandes gostaria de ter uma situação
em que a esquerda apoiasse Bin Laden e os outros sectores fossem os paladinos
da democracia e da justiça. Azar seu: acontece que muitos de nós achamos os
Bin Ladeeis indefensáveis e, ao mesmo tempo, sabemos ver, na actual situação,
a continuação de mais do mesmo: a política do petróleo, a unipolaridade e a
oportunidade para matar as instâncias de regulação internacional e o movimento
por uma globalização alternativa."
Miguel Vale de Almeida
Público, 28.10.01
Sem rodeios
"(...) Um dos espectadores desta "aula" quis saber, a dado passo, como é que
Klein via a América e como é que a América o via a ele. Ninguém lhe perguntou
directamente o que pensava do ataque às "twin towers", mas Klein (fotógrafo
e cineasta americano) tomou a iniciativa: "Se querem saber o que penso dos acontecimentos
de 11 de Setembro, penso muitas coisas, e uma delas é que os americanos estavam
a pedi-las; nos últimos dez anos, sempre que não têm nada para fazer, bombardeiam
o Iraque". Admitindo que o ataque às torres de Manhattan "foi uma coisa terrível",
Klein acrescentou, no entanto, que "talvez tenha sido, também, uma coisa boa,
porque os americanos começam agora a perceber que não são invulneráveis nem
superiores a toda a gente"."
Luís Miguel Queirós
Público, 28.10.01
Recolha, selecção e tradução: José Paulo serralheiro
Pedido dos textos completos: pagina@mail.telepac.pt
|