No meu tempo de escola mandavam-nos de castigo para a biblioteca
Memórias recentes de Henrique Nicolau (pseudónimo de António Damião),
um escritor de policiais premiados que não identifica os criminosos
António Damião nasceu em Pocariça (Alenquer) em 1941. Aos 14 meses veio para
Lisboa. Aí frequentou a escola primária e o liceu (Gil Vicente). E por aqui
ficou; hoje a residir nos Olivais.
Trabalhou para cinema (publicidade, documentários, televisão), tendo realizado
o filme Talvez Amanhã (1969).
Recebeu os prémios Editorial Caminho de Literatura Policial com O Trabalho
é Sagrado, e Repórter X, da Associação Policiária Portuguesa, com Todos
e Nenhum.
Com onze livros publicados, entre os quais Na Boca da Infância (1988)
António Damião é, no entanto, mais conhecido pelo pseudónimo Henrique Nicolau
com que assina os seus romances policiais.
- Vou centrar a nossa conversa particularmente sobre um dos seus livros - Na
Boca da Infância - ainda que seja no policial que mais tem investido. Referenciei
onze livros seus...
- É... só vendo. Não me recordo desses pormenores. Para além de "Na Boca da
Infância" publiquei também uma série de livros, ditos policiais, entre 1985
e 1993.
- A maioria editados pela Caminho e os dois últimos na Puma. Desde 1993
que não tem aparecido nada...
- Pois não...
- Ou seja, o Henrique Nicolau (pseudónimo para o género policial) tem publicado
pouco, mas o António Damião ainda menos porque só saiu um com o seu verdadeiro
nome (o romance "Na Boca da Infância"). Como é que explica este facto?
- Vamos lá a ver...
- De 1985 a 1993 publicou um livro todos os anos, e em 1992 chegou a lançar
dois livros.
- Bom, não tenho propriamente uma explicação para esse facto...
Comecei a escrever no género policial sob o pseudónimo de Henrique Nicolau e
só depois é que me lembrei de escrever "Na Boca da Infância". Como não era policial,
resolvi utilizar um outro nome. O editor não gostou muito, mas eu sou teimoso.
Tenho talvez privilegiado o policial porque é um pouco como contar uma história.
Têm-me saído...
Não me têm aparecido ouras histórias; ou por outra, elas existem, alguns farrapos
soltos.. Coisas escritas que irão certamente ser assinadas por António Damião.
E pronto: já se sabe que o Henrique Nicolau é o dos policiais e o António Damião,
quando escrever, abordará outros géneros que lhe vierem à cabeça.
- António Damião para o romance autobiográfico e Henrique Nicolau para
o policial, uma questão de hierarquias?
- Não é uma questão de hierarquia. Eu não hierarquizo nada. Há grandes
romances no género policial. E depois também acontece que este tipo de livros
a que se chama policiais, tiveram, em Portugal, a infelicidade de se chamarem
policiais, apesar de, às vezes, nem polícias terem...
- A decisão de optar por um pseudónimo português vai de certa maneira contra
o que era habitual em Portugal, onde quem escrevia policiais o fazia normalmente
em inglês (por exemplo o Dennis McShade, usado pelo Diniz Machado). Foi uma
opção consciente essa de nacionalizar...
- Foi uma opção perfeitamente consciente.
- Mas uma opção com uma certa dose de risco?
- Sim, foi um risco. Mas qualquer pessoa que escreva ou publique livros em
Portugal arrisca. Quanto a mim, foi um acaso. Não tinha nada que fazer e li
um anúncio da Caminho onde se oferecia um prémio. Pensei para mim próprio: "E
que tal escrever um livro?" Aliás, para ser correcto, a prosápia foi bem maior:
pensei em escrever o livro para ganhar o prémio. E assim foi, comecei a escrever
e aquilo divertiu-me imenso.
- Está provado que "o trabalho é sagrado"...
- O trabalho é sagrado. Aliás, o meu trabalho ganhou um prémio. Quando cheguei
ao fim, li o livro e disse para mim próprio: "Estes gajos não me vão dar o prémio.
Ainda por cima não digo quem é o criminoso..." Enfim, mandei aquilo, já que
tinha tido tanto trabalho, mas tinha decidido continuar a escrever dessem eles
o prémio ou não...
- Em certos estratos da população o policial é um livro profundamente consumido.
Porquê ?
- Porque, na minha opinião, mantém a tradição do romance realista do século
passado (já não é do século passado, é do século dezanove). Depois, o policial
fala do dia-a-dia e da rua, que é um ambiente que, por inerência, diz muito
às pessoas. Aliás, se reparar, o próprio policial americano, quer na escrita,
quer nos filmes e nas séries, começa a incluir na narrativa a vida das pessoas;
deixou de ser aquele clássico baseado exclusivamente no enredo - do indivíduo
que investiga, que é mais hábil ou menos hábil, que é mais inteligente ou mais
esperto, que faz os cálculos todos, analisa -, para passar a falar da vida do(s)
protagonista(s) e dos outros, dos criminosos... Ou seja, tem desenvolvido e
tem mantido a tradição do romance realista com que as pessoas se identificam.
mais facilmente.
- O António Damião está ligado ao mundo do cinema e da publicidade, e chegou
inclusivamente a trabalhar para a televisão...
- Sim, fiz muita coisa. Nos anos 60 era realizador de um programa quinzenal
de 50 minutos - o "Ensaio" -, que depois passou a ser semanal. Por razões várias
acabei por desistir do projecto... as coisas estão sempre a mudar. Fiz também
muitos filmes de publicidade. Mas aí parei, achava aquilo uma chatice. Mas era
uma maneira de ganhar bem a vida.
- Esse mundo dos filmes foi importante para si, não? Dedica até um livro,
"A Escola da Verdade", "aos amigos dos filmes".
- É, de certa maneira é verdade. Mas talvez ainda pegue nessas coisas.
Eu devia era escrever as minhas memórias. Mas se escrevesse as memórias não
seria para as publicar em vida porque não estou para me aborrecer...
- Uma particularidade do seu estilo está na linguagem. No livro, recorre a uma epígrafe do Camilo Castelo Branco - não por acaso, naturalmente. Uma espécie de defesa para eventuais ataques à linguagem vernácula e "dura" das crianças, já que «na boca da infância, o linguajar é livre e aberto».
- É. Eu sabia que os senhores críticos encartados me iriam cair em cima nesse
aspecto e, de facto, isso aconteceu. Deram-me muita "tareia" pelo facto de eu
utilizar o calão lisboeta, sim... mas os críticos encartados usam cartola, punhos
de renda e coisas que tais. Eu fui buscar o mestre da língua portuguesa para
chamar a atenção de que não nos devemos constranger em relação ao uso das palavras.
As palavras são as palavras...
- Isso é muito visível nos seus romances policiais, não é? Daquilo que
eu conheço da sua obra, é uma marca muito própria da sua escrita. Normalmente,
neste género de livro, os leitores parecem ser mais tolerantes porque parte-se
do princípio que é um livro para adultos, não concorda?
- Exactamente. Às vezes telefonam-me para ir a escolas - encontros sobre a
infância, por exemplo - e eu desculpo-me argumentando que o livro não é destinado
a um público infantil; que não é um livro para crianças, é um livro para adultos.
As pessoas que o lerem não terão dúvidas sobre isso. Apesar disso, conheci pessoas
que me disseram lê-lo em público e até famílias que o liam em conjunto - um
aspecto curioso, porque hoje já não há muito esse hábito de ler em família -,
garantindo-me que se divertiam muito e que os miúdos gostavam, e que, por vezes,
até repetiam a leitura.
- O seu livro tem muito de registo etnográfico. No modo como as crianças
falavam naquela altura, à forma como se achincalhava uns aos outros, até no
que respeita às expressões e à própria construção das frases...
- Sim, houve também um esforço da minha parte de o livro servir, quanto mais
não seja, como uma espécie de registo para alguém que queira estudar a linguagem
da Lisboa de então. Tem lá bons exemplos de algumas expressões e de palavras
que caíram em desuso, mas que, eventualmente, poderão ser recuperadas. Aliás,
também já "levei na cabeça" por isso mesmo, mas tal não me incomodou.
Tive a sorte de começar a escrever muito tarde. Eu acho que as pessoas devem
começar a escrever tarde, ou melhor, podem começar a escrever cedo, mas a publicar
mais tarde. É o meu caso. Quando publiquei já estava calejado, já sabia como
essas coisas funcionam e não me preocupei com as reacções.
- Outro dado que recorda com uma certa graça é o facto de se proibirem
as leituras não escolares - o Cavaleiro Andante, o Mosquito, O Mundo de Aventuras
- chegando o "Sobe e Desce" a fazer verdadeiras rusgas às malas dos alunos...
- É verdade, nem se podiam levar para a escola. Ah! o "Sobe e Desce"... Ele
era lá professor. Havia um professor que tinha um bocado esse feitio. Havia
também o director, uma figura severa no exercício do poder. Mais tarde, o meu
irmão foi para a mesma escola e ele queria obrigá-lo a pagar - já não sei quanto
- para a Mocidade Portuguesa. Como era mais velho e achei aquilo estranho e
abusivo, fui ao Ministério da Educação informar-me e um funcionário disse-me
que não era obrigatório pagar. O pobre do meu irmão correu alguns riscos de
o aborrecerem, mas vá lá, teve sorte.
- Curioso, na altura proibiam-se a entrada de livros e revistas nas escolas
e hoje em dia queixamo-nos que as crianças não lêem... estamos sempre desejosos
que leiam... qualquer coisa.
- Seja o que for. Seja o Tintin - o Tintin até é muito engraçado -, ou outra
coisa qualquer. Importante é ler. Mas pior foi mais tarde, quando andei no Gil
Vicente. O reitor, Joaquim Romão Duarte, que era comissário nacional da Mocidade
Portuguesa (nós chamávamos-lhe o "Quinzinho das Cancelas" porque ele resolveu
pôr cancelas ao redor do liceu para que os alunos dos diferentes ciclos não
se pudessem misturar - era como as ovelhas, umas vão para aqui, outras vão para
ali, uma coisa terrível), mandava-nos de castigo para a biblioteca, onde podíamos
requisitar um livro. Se o professor faltava também íamos de "castigo" para a
biblioteca, mas eu divertia-me imenso porque fartei-me de ler livros. Quando
acabavam as aulas não se podia ir para lá ler, e não se podiam levar livros
emprestados. Ou seja, só íamos para lá ler se o professor faltava, que era para
não ir para o recreio incomodar os outros que estavam nas aulas, ou se estávamos
de castigo.
O livro era um castigo.
- Hoje a leitura literatura infanto-juvenil é "endeusada", de certa maneira,
e a literatura, propriamente dita, é praticamente remetida para o secundário...
- Mas há muito leitores. Os autores da chamada literatura infanto-juvenil
vendem muito.
- Mas acha que as crianças e os jovens lêem mais?
- Eu acho que se lê mais. Acho que há mais leitores. Nos meus tempos de liceu,
mesmo no 5º, 6º e 7º ano (eu no 7º ano já estava na alínea que dava para letras),
havia, na turma, dois ou três alunos que se interessavam pela leitura. Hoje,
as pessoas queixam-se que as turmas são muito grandes, mas naquela altura chegávamos
a ser 40 na mesma sala. Também é verdade que daqueles 30 ou 40 metade não estava
lá a fazer nada... E se se portavam mal iam de castigo para a biblioteca.
- Uma boa forma de se começar a odiar as bibliotecas...
- Mas esta prática estendia-se a um nível mais vasto, não era só na instituição
escolar em si: os pais não gostavam que lêssemos obras que não fossem de estudo.
Livros de estudo é que eram bons, os outros não se liam...
De um modo geral a leitura não era muito incentivada. Desgraças da época que
então se vivia. Se há vontade de dominar quem quer que seja é mantê-lo na ignorância...
Entrevista conduzida por Luís Souta
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