Euforia do fim das aulas - A escola no consultório de João Teixeira Lopes
Qualquer prática do quotidiano é também iminentemente cultural - Lembra
o sociólogo João Teixeira Lopes
"(...) A escola tem de saber abrir-se ao conflito, ao conflito sobre a própria
identidade dos estudantes(...)"
É sociólogo e um interveniente de primeira linha no meio cultural e político
portuense. Doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em Sociologia
da Cultura e da Educação, da qual é professor associado, João Teixeira Lopes
tem desenvolvido investigação não só em torno das questões culturais - publicou
as "Tristes Escolas - Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano",
em 1997, "Cidade e Cultura", em 2000 e "A Tutoria do Porto - Estudo Sobre a
Morte Social Temporária", em 2001, sob a égide da Editorial Afrontamento -,
como também, mais recentemente, sobre os hábitos de leitura juvenis. Actualmente
desenvolve investigação em torno dos impactos sociais da cultura nos quotidianos
dos espectadores, no sentido de propiciar uma comunicação mais estreita entre
as instituições culturais e os públicos.
"Tristes Escolas" é o título de um livro que publicou em 1996 onde, a partir
de um estudo de terreno, relata as práticas culturais em quatro escolas da cidade
do Porto. A que conclusões chegou?
As conclusões prendem-se com aquilo a que nesse livro me refiro como um "amplo
movimento de recusa da escola". Mas que fique bem entendido: este movimento
de recusa da escola é, no fundo, uma resistência face a um determinado tipo
de escola - a escola unidimensional, extremamente centrada na aprendizagem e
profundamente desligada dos quotidianos -, que acaba por ter amplas consequências
ao nível cultural: os alunos encaram o espaço escolar como algo em que não vale
a pena investir e dissociado do prazer e do próprio sentido lúdico da aprendizagem,
pelo que qualquer iniciativa cultural no âmbito da escola e no espaço escolar
é imediatamente encarada pelos alunos como uma obrigação, sentimento que choca
profundamente com os esforços que têm vindo a ser feitos, nomeadamente a nível
legislativo, no sentido de alargar os tempos extra-curriculares, e no sentido
de alargar o próprio conceito de escola a uma instituição aberta e ligada à
comunidade envolvente.
A esse propósito refere mesmo, a certa altura do livro, existir "um desinteresse
fortísismo pela produção cultural organizada no espaço escolar, mesmo quando
esta, apesar de esporádica, mal programada e deficientemente divulgada, responde
de certo modo aos seus desejos e aspirações".
No decurso da minha investigação observei que, por vezes, havia interesse
por parte dos professores em aproximar-se das vivências e das narrativas estudantis,
mas ainda assim eles não conseguiam captar os alunos, o que provocava um sentimento
de frustração e de desmotivação. A própria autarquia, por iniciativa do Pelouro
da Cultura, colocou naquelas escolas encenadores e coreógrafos, e mesmo eles,
técnicos de animação sócio-cultural, não conseguiam captar mais do que um grupo
restrito de alunos, que já estavam à partida cativados.
Por mais que as iniciativas realizadas no âmbito desse projecto fossem extremamente
imaginativas e partissem das vivências do dia-a-dia estudantil - muitas vezes
eram os próprios estudantes quem escrevia o guião das peças ou planeavam os
cenários e o tipo de performance - o desinteresse mantinha-se. Aliás, e esse
aspecto é curioso, os alunos mais empenhados eram mal vistos pelos restantes
colegas, encarados como uma espécie de "extraterrestres", como se o facto de
conseguirem tirar prazer de uma actividade não-lectiva os tornasse seres estranhos,
com os quais não conseguiam comunicar.
De acordo com a sua investigação, uma das razões para este desinteresse
é consequência do "efeito perverso da insistência na produção cultural heterónoma
e sujeita a avaliação", de que refere o exemplo da Área-Escola. Quer comentar?
A área escola constituiu, na minha opinião, um rotundo fracasso, e a dimensão
avaliativa contribuiu para isso. A avaliação foi, durante muito tempo, o nó
górdio do sistema de ensino e, de certa forma, continua sê-lo (nestas alturas
relembro sempre uma frase de Marx, quando ele refere que o exame é uma espécie
de transformação do saber profano em saber sagrado; como se o aluno, antes de
ser avaliado, fosse um ser destituído de competências e a partir do momento
em que é avaliado passasse a estar, quase que como por milagre, dotado dessas
competências).
Isto, porque mesmo que os professores - e as próprias reformas têm insistido
nesse aspecto - tentem desenvolver projectos de formação integral do indivíduo,
de aproximação à comunidade, de fomentação da expressão artística e outras,
o que acontece é que existe uma crescente apropriação instrumental da escola
por parte dos alunos que os leva a eleger a entrada no ensino superior como
objectivo principal e a trabalhar quase exclusivamente nesse sentido. E isso
faz com que tudo aquilo que, de certo modo, os distrai desse objectivo seja
entendido como superfluo, desnecessário ou até mesmo ridículo.
Quanto ao resto, trata-se de aproveitar a escola como um cenário, um palco de
interacção, de desfile de apresentação das diferenças grupais, caindo um pouco
naquele narcisismo das pequenas diferenças que, infelizmente, caracterizam certos
sectores das classes médias urbanas: uma ética de diversão baseada no consumo
ostentário, no poder simbólico das marcas, na segregação de quem não possui
determinados códigos de estilo, numa espécie de competição desenfreada do "look"
(aspecto)... tudo isto acaba por ser o que sobrevém dessa preocupação de utilizar
a escola e a aprendizagem como um meio, e não como um fim em si mesmo.
E esta atitude de encarar a escola como um meio de certificação acaba por reflectir-se
também, por exemplo, na questão da leitura. Ultimamente tenho estudado os processos
de leitura juvenil, e tenho chegado à conclusão que os estudantes do 3º ciclo
do ensino básico e do ensino secundário, conforme caminham para os níveis superiores
de ensino, lêem cada vez menos. E quando o fazem lêem cada vez menos livros
que não estejam incluídos no curriculo escolar, isto é, naquilo que a escola
prescreve, precisamente porque concentram todo o seu tempo e o seu esforço na
aprendizagem. Tudo o mais é superfluo. E isto tem como efeito perverso matar-se
o gosto pela leitura. É assim que, quando acaba a escola, há uma espécie de
regressão nos hábitos de leitura, que é algo de extremamente preocupante.
As iniciativas culturais presentes na escola não funcionam com base no
que designa de "cultura acção", caracterizada por uma trajectória social e herança
cultural em permanente actualização, mas de alguma forma associadas à chamada
"cultura objecto". Será também esta uma das razões para o desinteresse dos alunos
em relação à criação cultural?
Sem dúvida alguma. E esse é um grande problema, porque penso que não se percebeu
ainda que qualquer prática do quotidiano, qualquer prática social, é eminentemente
uma prática cultural. E o quotidiano estudantil está recheado de práticas culturais.
Quando no livro me refiro, por exemplo, às questões da cultura-diversão, à "apresentação
de si" ou à construção de estilos de vida como um lado interessante desse quotidiano,
pretendo chamar a atenção para o facto de essa estetização difusa do quotidiano
poder ser aproveitada para chegar a outros patamares, inclusivamente ao nível
da própria experimentação artística.
Os quotidianos juvenis não devem ser entendidos como quotidianos de alienação,
ao contrário do que muitas vezes se pensa, porque são quotidianos onde se comunica
sentido e significado, onde há histórias que os estudantes contam a respeito
de si próprios e das suas vidas. A maneira de vestir e de falar, ou os próprios
temas de conversa, contam-nos essas histórias, e isso também são práticas culturais.
Penso que há uma espécie de desvalorização de toda a expressividade contida
nos actos comunicativos dos estudantes e é preciso aceder a ela. Eles são produtores
diários de cultura, dessa cultura-acção a que me refiro, de uma cultura no sentido
antropológico, que encara todo e qualquer acto social como uma forma de construir
culturalmente e socialmente a realidade.
Aliás, e vou citá-lo uma vez mais, refere que apesar do "notório falhanço
da função socializadora da escola, os alunos continuam a valorizar o lado expressivo
da escola, o que constitui um potencial emancipador francamente desaproveitado".
Perfeitamente. Existe nas escolas uma aposta fortíssima no convívio intragrupal
- possuir um grupo é fundamental na escola, quem não está integrado não é ninguém
(é ninguém, melhor dizendo), votado à solidão, ostracizado -, pelo que o grupo
acaba por funcionar como um suporte activo de rituais, de símbolos, de imagens
e de códigos comunicativos que fazem emergir realidades também muito bonitas.
Muitas vezes ela está implícita, pelo que é preciso trabalhá-la, torná-la mais
visível à própria consciência dos jovens, já que é baseada numa espécie de sentido
prático da vida e nem sempre acede à sua consciência. É o seu dia-a-dia e eles
não pensam nisso.
E essa dinâmica podia ser aproveitada provocando deliberadamente o seu quotidiano,
para que eles possam sentir o que é o seu modo de viver e para que valorizem
o seu modo específico de comunicar. Esta parece-me ser uma boa estratégia, e
isso foi feito, designadamente, em dois projectos: "Os Dias da Escola", promovido
pelo pelouro de animação da Câmara Municipal do Porto, no qual participei conjuntamente
com os sociólogos José Madureira Pinto e Filipa Portugal, através do qual tentamos,
a partir da investigação desenvolvida por mim próprio, reconstruir os eixos
fundamentais do quotidiano juvenil e, partindo desses eixos, propor uma série
de temas que serviriam de base a um concurso de diferentes expressões artísticas
- desde a poesia à prosa, passando pela fotografia, pela dança, pela música
ou pelo vídeo...
Onde mais uma vez só um pequeno grupo aderiu, ou não?
Não, curiosamente houve uma participação que ficou bastante além das nossas
expectativas iniciais.
Mas porque essa organização provinha do exterior da escola?
Sim, e porque a apresentação pública desta efeverscência cultural decorreu
também fora da escola, no Palácio de Cristal. Durante uma semana, esse local
transformou-se numa série de palcos, onde havia inclusivamente uma rádio animada
por alunos de diferentes estabelecimentos de ensino, onde as bandas de garagem
ou de música alternativa podiam actuar, onde havia uma tenda para teatro, 'ateliers'
de cerâmica e uma exposição colectiva com os trabalhos desenvolvidos.
Recentemente, no âmbito da Porto 2001, e pegando na mesma ideia, desenvolveu-se
o projecto "Pontes de Partida" - no sentido de partida para uma escola diferente,
aberta à diversidade, à espontaneidade, à sensibilidade e, se se quiser, à explosão
expressiva que esses grupos juvenis transportam em si - cuja base assentava
novamente nos universos estudantis, e que teve como produto final uma bela exposição
no salão ático do Coliseu. Partindo daí, incentivou-se uma segunda fase, mais
ousada, que consistiu em encomendar às escolas projectos colectivos, com o objectivo
de pôr os diferentes agentes escolares - professores, alunos e direcção - a
comunicar entre si e procurar um consenso. E surgiram diversos projectos interessantes:
desde esculturas de arte pública a cd-roms educativos e a manuais escolares,
passando por traduções de obras escritas e edição de poesia, cujo resultado
pode ser visto até ao final de Novembro nas escolas que dele participaram.
O grande problema é que habitualmente estes agentes não comunicam, são grupos
fechados, que acabam por reflectir sintomas que se prolongam em outras gerações
e em outras instituições, de distinção social, de segregação, de competição.
O que pretendemos foi exactamente diluir essas fronteiras. Aliás, na minha opinião,
as escolas públicas são provavelmente a última oportunidade de convívio intercultural
antes de se entrar na vida activa, e é por isso que eu defendo acerrimamente
a escola pública. Quando os alunos saem das escola fecham-se em grupos relativamente
homogéneos, endogâmicos, onde os próprios afectos são endogâmicos; e a escola,
é de facto, pela pluralidade de áreas de recrutamento, em particular nas escolas
urbanas, uma ocasião única para a educação no espaço público e para o cosmopolitismo.
De que forma gerem as escolas a diferença cultural, nomeadamente no que
respeita às sub-culturas juvenis?
Muito mal. Gerem-na como um ruído, como um problema, não como uma ocasião,
como um recurso. O que acontece, na maior parte dos casos, é que se verifica
uma coexistência, nem sempre pacífica, entre estas diferentes culturas juvenis.
Elas persistem no mesmo espaço, apesar de dentro dele haver territórios altamente
demarcados por grupos estilísticos ou estéticos, que têm, por sua vez, uma raiz
social implícita. E esse território é a base de uma espécie de "apartheid" grupal.
Ou então, na melhor das hipóteses, de uma coexistência pacífica baseada na indiferença.
Ora, para haver interacção é preciso que as diferentes culturas se conheçam;
é necessário, inclusivamente, que haja conflito entre elas para haver dignificação
mútua. Se, pelo contrário, reina a passividade, a indiferença, a mera coexistênia
e partilha passivo dos espaços, o multiculturalismo é letra morta, não passando
de uma sobreposição de culturas diferentes. O multiculturalismo implica interacção
activa, implica conflito e o reconhecimento da dignidade do outro. E isso simplesmente
não acontece.
Nesse sentido, o contexto cultural escolar urbano e rural está cada vez
mais homogeneizado...
Concordo inteiramente. Eu diria que cada vez mais se poderá falar de um contexto
urbano altamente disseminado, ainda que ele, muitas vezes, seja difuso e não
tão concentrado. Mas hoje é muito difícil falar em cidades e em campos. O efeito
urbano generalizou-se de tal forma, quer pela imposição de determinados significados
culturais por parte dos países dominantes, quer pelo peso nivelador dos mass
media, quer mesmo pela progressiva compressão do espaço-tempo - através da revolução
tecnológica e dos transportes -, que não existem, na minha opinião, diferenças
substanciais entre territórios.
O que não implica que cada escola não possua a sua autonomia relativa. É evidente
que possui, e é importante salientá-lo: cada escola interpreta a legislação
à sua maneira, cada escola tem um corpo docente com as suas idiossinrassias,
e obviamente que cada escola tem também as suas diferentes área de recrutamento
social. E isto não significa necessariamente uniformização. O espaço faz sempre
uma diferença. Ainda que esse espaço seja um urbano omnipresente, há sempre
uma marca própria, até pela forma como as pessoas se apropriam dele ou como
utilizam o termo "habitar". Habitar uma escola é apropriar-se dessa escola e
fazer dela um lugar seu, e isso varia, necessariamente, de acordo com as especificidades
locais.
Não se estarão a perder traços culturais próprios dessas comunidades rurais?
Que consequências advêm daí para a identidade das próprias escolas?
Eu diria que, apesar de tudo, algumas marcas distintivas das pertenças territoriais
ainda se vão mantendo. De qualquer forma, se pensarmos que mais de dois terços
da população portuguesa se situa na faixa litoral entre Setúbal e Valença -
ainda que muitas vezes se caracterize por uma urbanização difusa -, haverá sempre
tendência para a entrada no mercado de massas, para lógicas de consumo ostentatório,
para referências e universos urbanóides e para a generalização de certos símbolos
e modelos de referências. O que não quer dizer, volto a repetir, que cada agente
social, cada aluno e cada professor, não seja um receptor activo e não transforme
e não reinterprete mensagens que, podendo partir de um centro emissor único
e serem produzidas em série, nunca são apropriadas da mesma forma. Quanto a
isso eu acredito bastante nas potencialidades de uma referência cultural activa,
reinterpretativa, que acaba muitas vezes, com imaginação e com criatividade,
por modificar aquilo que recebe.
Diz também no seu livro, através de uma expressão bastante crítica, que
"hoje encontramos uma escola que não funciona e que se demitiu de quaisquer
funções, emancipadores ou conservadoras", e que no contexto dessa inoperacionalidade
"a reprodução cultural mantém-se ou agrava-se". É assim?
Sem dúvida alguma, e mantenho que disse. A escola demitiu-se de ser escola
ao fechar-se na sua função unidireccional, ao fixar sucessivamente formas que
se sucedem sem um fio condutor, ao previligiar uma dimensão avaliativa, ao negligenciar
precisamente os quotidianos juvenis... A escola acaba por ser uma espécie de
local de passagem, de trânsito...
Acaba ela própria por tornar-se uma forma de cultura...
Sim, uma cultura de negação da própria expressividade cultural inerente a
todos os grupos sociais. A escola não potencia essa expressividade e por isso
mesmo ela acaba por não ser emancipadora, mas antes uma passagem da qual os
estudantes acabam por ficar prisioneiros.
Mas porquê essa dimensão reprodutora da escola? Por ser a resposta social
que dela se pensa esperar?
Porque a escola não marca, e os alunos não investem na escola, investem fora
dela. Os alunos investem sobretudo na construção das suas próprias identidades
nos circuitos de convivialidade. Inclusivamente, quando comparamos circuitos
de convivialidade dentro da escola e fora dela - mesmo quando os alunos se mostram
muito activos no seu interior -, verificamos, ainda assim, que os verdadeiros
amigos estão no exterior. Os colegas são muitas vezes aqueles com quem temos
obrigatoriamente de lidar; ou seja, um colega não é o mesmo que um amigo.
Desta forma, o investimento cultural e afectivo acaba por ser feito fora da
escola. É nesse sentido que eu descrevo no livro o fim das aulas ou a ausência
de um professor como momentos de euforia, porque é aí, no habitat residencial,
que se situam os pólos de investimento dos jovens. O habitat residencial é hoje
em dia representado, nomeadamente, pelos grandes centros de consumo das cidades.
As práticas culturais centram-se cada vez mais em espaços fechados, no apartamento,
no audiovisual, na cultura do centro comercial, que é um falso espaço público,
onde eles acabam por não ter a riqueza do espaço público totalmente livre e
aberto - a praça ou a rua. E vai-se perdendo cada vez mais essa cultura da rua,
aumentando proporcionalmente o desconhecimento da própria cidade, que acaba
por ser um território pautado por "ilhas". O resto é uma espécie de território
fantasmagórico, que não se visita porque não se conhece. É impressionante, no
caso do Porto, o desconhecimento que muitos estudantes demonstram acerca de
vastas zonas da cidade, que não passam de zonas escuras da sua cartografia mental.
E isso, na minha perspectiva, é um empobrecimento terrível.
Portugal é cada vez mais um país de imigrantes e vai-se tornando numa sociedade
multicultural. A escola está a aperceber-se dessa transformação e a actuar no
contexto dessa tranformação?
Os Sensos 2001 marcam efectivamente, na minha opinião, o fim do salazarismo
e do fascismo em Portugal, já que com a passagem de um país emigrante para um
país de imigração altera-se completamente as coordenadas do país e daquilo que
somos. A questão da diversidade étnica na escola é recebida, uma vez mais, como
um ruído adicional. Há experiências localizadas que abordam este tema com grande
sucesso, designadamente no que respeita à integração de cidadãos de etnia cigana,
mas a escola não está, de forma alguma, preparada para fornecer uma educação
multicultural.
Não está preparada porque os professores não foram formados nesse sentido e
porque não existem conteúdos educativos próprios - é indispensável que as editoras,
as empresas multimedia e as autarquias criem espaços onde seja possível formar
professores para a multiculturalidade e produzam conteúdos educativos nesse
sentido -, pelo que a escola acaba por ser um espaço de relativa ignorância
dessa diversidade. E porque, infelizmente, essas comunidades pautam-se por um
abandono escolar precoce bastante forte, e, destituídas de recursos culturais
e sociais, acabam por sofrer uma espécie de duplo insucesso: o insucesso escolar
propriamente dito e o insucesso sócio cultural, que no fundo, expressam o insucesso
da própria escola.
Apesar dessa diversidade étnica e cultural crescente, e mau grado o recente
processo de reforma educativa, a escola continua a manter curriculos de matriz
"etnocêntrico e eurocêntrico", para citar Luís Souta. Concorda?
Concordo inteiramente. Li há pouco tempo que os israelitas, nos seus manuais
escolares, ignoram boa parte da história dos palestinianos. Bom, nos nossos
manuais escolares ignoramos totalmente a história dos povos africanos. A colonização
raramente é debatida e os descobrimentos são ainda focados como um encontro
de culturas, esquecendo a parte do choque cultural. Isto é, a escola encobre
muitas realidades, disfarça factos históricos e faz uma maquilhagem politicamente
correcta de acontecimentos cruciais para o desenvolvimento de uma nação.
E por isso a escola também aí falha, enquanto instituição que poderia construir
uma identidade nacional afastada dos estereótipos nacionalistas, do que ainda
persiste da mentalidade imperial portuguesa, do discurso bafiento sobre o glorioso
passado português, e mais interessada em ganhar a aposta da diversidade cultural.
A escola tem de saber abrir-se ao conflito, ao conflito sobre a própria identidade
dos estudantes, sobre a própria identidade nacional e do país que somos, e ao
conflito que resulta da coexistência de culturas e ethos diferenciais.
Mas isso não acontece, porque no dia-a-dia burocrático conta muito mais a vertigem
legislativa e as adaptações às constantes reformas, e com isso perde-se a oportunidade
única de nos pensarmos de outra forma como pessoas e como país.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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