Os acontecimentos de 11 de Setembro apanharam desprevenida
toda a gente. Os governos, os serviços secretos, as chefias militares, os analistas,
os estrategos políticos, os especialistas em relações internacionais, as organizações
mundiais, ninguém foi capaz de prever a simplicidade da operação, que terá precisado
apenas de alguns atacantes-suicidas e alguns milhares de contos. Esta surpresa
explicará, em parte, a forma desordenada, precipitada e confusa que está a caracterizar
a resposta. E o nervosismo dos que nos mandam não pensar e calar. Mas pensar
é preciso.
Confusão, dúvidas, divergências, contradições, vacilações, propaganda à mistura
com acções e decisões suficientemente importantes, com incidência nas nossas
vidas, são elementos que ajudam a caracterizar a resposta que está a ser dada
aos acontecimentos de 11 de Setembro e nos fazem parar e pensar.
Em vários jornais do mundo, sobretudo na Europa, são muitos os que vão dizendo
que agora nós somos todos americanos. Querem dizer com isto que estamos todos
implicados na resposta a dar aos atentados de Nova Iorque. E porque vivemos
num mundo globalizado estamos de facto todos implicados quer queiramos ou não.
Mas se é verdade que num certo sentido "todos somos americanos" também é certo
que os que hoje são tutelados pela "pátria" americana uns são filhos outros
enteados. Por outras palavras, os que vivendo em território americano têm direito
de voto para a administração americana são os filhos legítimos da pátria, nós
os tutelados que apenas sofremos os efeitos das políticas da "República Imperial"
(Raymond Aron), sem que nos assista qualquer direito de participação democrática
nem colheita de dividendos ou direito de herança somos sem dúvida os filhos
ilegítimos da nova "República Imperial". Mesmo filhos ilegítimos, ou até por
o sermos, não deixamos de sofrer as consequências, negativas ou positivas, da
potência mundial. Não estamos por isso dispensados de intervir do modo e com
os meios de que dispomos.
Em meados de Outubro, Umberto Eco, termina um seu extenso artigo
sobre a actual situação internacional concluindo que "na era da globalização,
uma guerra global é impossível porque conduziria inevitavelmente à derrota de
todos". Num outro artigo, publicado no jornal El País, Emílio Lamo de Espinosa,
tratando o mesmo tema, tira seis conclusões que apontam no mesmo sentido: 1.-
actualmente só há um exército capaz de intervir em qualquer lugar do mundo;
2.- esse exército, seja qual for o lugar onde intervenha, não tem um adversário
à altura; 3.- mesmo uma qualquer coligação de inimigos continuaria a não ser
um adversário plausível; 4.- por estas razões já não é possível uma guerra mundial;
5.- só são possíveis guerras locais desde que elas sejam benéficas, permitidas
ou depreciadas pelos Estados Unidos; 6.- finalmente, qualquer guerra local passa
assim à categoria de guerra civil mundial dado que a todos afecta e em primeiro
lugar os Estados Unidos.
Estas afirmações vêm apenas confirmar uma situação internacional
que vinha em galopante desenvolvimento. É sabido que quando num dado território
um povo está submetido a um só poder e a um só exército, mesmo que existam outras
autoridades subalternas, dizemos que estamos perante um Império. Foi assim,
por exemplo, com os impérios Romano ou Otomano ou mais recentemente com o Britânico.
O que há agora de novo, tendo por centro os Estados Unidos da América, é que
o território dominado é o mundo inteiro, daí a possível designação de Império
Global.
É num mundo com estas características que nos encontramos.
Ao mundo bipolar da última metade do século XX sucedeu, por enquanto, um mundo
centrado num só Estado. Face às circunstâncias e à concentração de poder não
nos podemos admirar que a procura de solução dos novos conflitos e contradições
de interesse fuja aos tradicionais confrontos políticos ou militares seja na
utilização de meios pacíficos, seja na utilização da violência. O surgimento
de novas formas de confronto é tão mais "natural" quanto sabemos que as organizações
de regulação internacional (a ONU por exemplo) em vez de ganharem novo protagonismo
que desse sentido à participação democrática dos cidadãos do mundo e funcionassem
como lugar de procura de solução dos problemas e diferendos por meios pacíficos,
foram progressivamente esvaziadas de poder real. Assistimos nos últimos anos
a um esvaziamento da função política das organizações políticas internacionais.
Parodiando o que se passa nos nossos Estados a estas organizações políticas
foi sobejando a função assistencialista e, mesmo nesse campo, reduzidos a uma
função técnica coordenada pelos poderes dominantes. A par deste esvaziamento
vimos florescer organizações de pendor económico e político como o G-7/8, o
Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) todas elas organizações
não eleitas e sem respaldo democrático.
Nos últimos anos foram muitos os que deram como definitivo
não só o modelo económico dominante como também o modelo político. Como se estivéssemos
condenados ao hipermercado mundial e ao seu governo pela República Imperial.
Os acontecimentos de Setembro voltaram a lembrar questões tão elementares como
a de que a História é dialéctica e se move mesmo que seja contra os nossos interesses
imediatos e as nossas certezas definitivas. As últimas semanas levaram a que
se reafirmasse a diversidade cultural do mundo em que vivemos, uma diversidade
tão grande que só tem paralelo na desigual distribuição de riqueza, pobreza
e direito ao usufruto da liberdade.
Alguns, confundindo o seu bem estar com o bem estar do mundo,
certos da sua superioridade moral, intelectual e política, defensores da tese
da impossibilidade prática de abdicarem do seu bem estar material, criticam-nos
por dedicarmos tempo a pensar e a procurar não só explicações mas outros caminhos
para o mundo em que vivemos. Dizem que já chega de análises e que é tempo de
agir. Querem assim dizer que é tempo de todos (filhos legítimos e ilegítimos
da pátria americana) de gritarmos que "somos todos americanos" e que apoiamos
sem precisar de pensar nem pestanejar as medidas que o governo americano tomar.
Ou seja, se não estamos cegamente com Bush estamos cegos por Laden. Ou somos
a favor da "sociedade aberta" ou a favor do "fundamentalismo islâmico". Assim
como se o mundo fosse tão pequeno que pudesse ser contido no umbigo de cada
um. Como se o facto de se analisar e criticar a "sociedade aberta" (que tantas
portas vem fechando) nos impedisse de fechar, e bem fechada, a porta de todos
os fundamentalismos sejam eles os representados pelos senhores Bush, Sharon
ou Laden. "Sinto-me mal por pertencer a uma raça humana que não merece respeito
nenhum. (...) Entre Mr. Bush e Bin Laden, não há diferença - ambos são criminosos,
ambos estão no mesmo ponto de evolução", disse, a pianista Maria João Pires
também neste mês de Outubro.
Não está em causa saber se o terrorismo é bom ou mau e se
deve ou não ser combatido. Sobre isso, suponho, existe total consenso. O que
está em causa são as formas de combater o terrorismo e, também, o de saber se
se combatem todos os terrorismos ou apenas aqueles que as conveniências de momento
convêm ao poder mundial dominante. Ler nas primeiras páginas de um jornal: "CIA
com ordem para matar". "Klinton mandou assassinar". "Permitida prisão sem culpa
formada". (...) Obriga a pensar e a querer saber o que alguns estão a fazer
ao pouco (mas que demorou muitas gerações a construir) que, julgamos, ainda
separa a civilização da barbárie. Para além da barbárie, medidas políticas com
este sentido retiram-nos autoridade moral e política e tornam as nossas sociedades
ainda mais frágeis.
Suponho que os acontecimentos que estamos a viver reforçam
em nós a consciência da fragilidade do mundo em que vivemos. Tão frágil é este
mundo que querer resolver o problema da insegurança bombardeando repetidamente
o Afeganistão, como se o objectivo final fosse a sua terraplanagem, nos deixa
ainda mais frágeis e desarmados. Frágeis porque, face à pobreza, mais do que
semear bombas sentimos a urgência de semear hospitais e sentimo-nos impotentes
para o fazer. Frágeis porque o tecido social, económico e político com que tecemos
as nossas sociedades é feito de precariedades e dependências. Frágeis porque
não soubemos lançar novas pontes que sejam "como os pássaros que vão e que vêm
entre o teu e o meu coração". Frágeis porque abandonámos ou desprezamos as velhas
pontes, as que vindo do fundo dos tempos ligaram o ser humano e lhe permitiram
sobreviver e evoluir.
Um mundo dependente e frágil porque desprezando as gentes
enaltece as próteses mecânicas. Tão frágil que bastaria que alguém provocasse
uma mera avaria informática para deixar sem rumo e sem tino aviões, comboios,
semáforos, radares, centrais nucleares, mísseis, telefones, televisões, hospitais...Mais
inseguro ainda porque a nova ameaça terrorista não é representada por gente
exótica, pobre, ignorante, em vias de extinção. Os que hoje dão corpo à ameaça
são presumivelmente cidadãos da classe média que podem ter sido educados em
Londres, Paris, Estocolmo, Berlim ou Nova Iorque. Falam várias línguas. Dominam
a ciência e a tecnologia. Frequentam os bons restaurantes e comem com garfo
e faca. Vestem bem. Trabalham connosco. Não dispensam o seu computador portátil
nem o telemóvel última geração. A ameaça não vem do passado pobre, vem do futuro
rico. Quem agora ameaça sabe impor as regras daquela que Mary Kaldor chamou
a "nova guerra" ou seja uma mistura da antiga e experimentada guerrilha, com
a organização e os meios do crime organizado, sabendo aproveitar com mestria
as tecnologias e enormes vulnerabilidades do mundo capitalista globalizado,
em particular o seu insaciável apetite pelo poder, a competição e o lucro.
Estes são, possivelmente, alguns elementos do contexto em
que nós somos chamados a viver, ensinar e educar. Se um mundo novo é preciso
outra escola é uma emergência.
José Paulo Serralheiro
|