Trabalhamos com e sobre pessoas, enfim, sobre a vida de todos os dias que, avessa
à quietude, está em permanente mudança. Sobretudo na periferia, onde tudo é, incluindo
as existências físicas dos homens e das mulheres, funestamente mais incerto. Ainda
antes de partir de Portugal confrontei-me com a instabilidade do que parecia estável:
a fábrica de caju do Xai-Xai tinha encerrado em finais de Abril, mais uma para
a longa lista de falências iniciada na segunda metade dos anos noventa.
Face a este novo cenário, entendi redefinir o lugar principal da investigação.
Após quase duas semanas de contactos, de diálogos e de pesquisa de informação,
decidi-me por Mandlakazi, uma pequena vila localizada a cerca de 60 quilómetros
da capital da província de Gaza. Sede de distrito, está ligada à história das
lutas contra o colonialismo português, na qual se elevam duas figuras, hoje
transformadas em mitos fundadores da nacionalidade moçambicana: Ngungunhane
e Eduardo Mondlane. O primeiro fez de Mandlakazi o centro político do seu império,
tendo acabado derrotado pelas forças portuguesas, a pouco mais de uma dúzia
de quilómetros da sede da localidade, na histórica batalha de Coolela. A um
punhado de quilómetros deste local situa-se Nwadjahane, a aldeia natal de Mondlane.
Importante centro produtor de caju, o encerramento, em 1997, da fábrica de
descasque de castanha de caju lançou a vila numa profunda crise económica e
social que se agravou com o fechar das portas, em 2000, da pequena fábrica de
Jongué, situada a quase trinta quilómetros de distância da vila. A tornar o
cenário ainda mais cinzento, as desastrosas colheitas dos últimos quatro anos
afectaram fortemente o comércio local e privaram os camponeses da sua principal
fonte de rendimento monetário.
Definido o lugar, em meados de Maio fiz-me ao caminho. As impressões iniciais
de Mandlakazi recordaram-me o que tinha escutado repetidamente: "Vais para o
mato, para um lugar onde ninguém passa". Na vila senti, de imediato, um aragem
difusa do tempo colonial soprada pelas habitações e pelos edifícios públicos,
quase todos construídos antes da independência. As ruas de terra batida organizam-se
em redor de uma avenida principal que é rematada, no topo, pelo edifício da
administração. Encostada a ela, num dos lados, temos o inevitável mercado informal,
onde se luta, todos os dias, pela sobrevivência. No lado oposto, numa das saídas
principais da vila, estende-se a zona comercial tradicional, das lojas do comércio
formal, quase todas propriedade de famílias de origem indiana.
As primeiras semanas em Mandlakazi foram difíceis. A imersão num outro meio
social não é tarefa fácil nem, tão pouco, rápida. Como sempre, vivi a situação,
já clássica, dos antropólogos e outros investigadores sociais que elegem a observação
participante como estratégia metodológica fundamental. Aqueles que se pretende
observar observam e perguntam: O que veio ele cá fazer? O que procura? Porquê
Mandlakazi? Quais as razões que levam um português branco a percorrer tão grande
distância para se instalar, por um longo período de tempo, na nossa vila? Inevitavelmente,
antes de começar a fazer perguntas, a bisbilhotar a vida dos outros, tive de
enfrentar (e passar) no exame a que os habitantes me submeteram, tendo como
matérias a minha pessoa e os objectivos do trabalho. Nada fácil, pois as questões
concretas eram de árdua resolução, exigindo-me o melhor dos meus recursos argumentativos.
Assim, tive de convencer as pessoas que não pertencia à família do primeiro
proprietário da fábrica, um colono português que abandonou Moçambique aquando
da independência, não estando ali para recuperar os bens da família; que não
era um investidor, como acalentavam muitos dos antigos trabalhadores, certamente
toldados pelo desespero, com o objectivo de estudar a possibilidade de reabertura
da fábrica; que estava muito longe de ser um evangelizador, mais um, dos muitos
que pululam pela região; nem era, de modo algum, um membro encoberto da RENAMO,
ali instalado para um trabalho de sapa da FRELIMO no distrito onde possui, tal
como acontece em toda a província de Gaza, uma das suas mais importantes bases
de apoio social e eleitoral.
Esta vivência inicial, esteada pelos dias, semanas e meses que já levo em
Mandlakazi, revelou, com nitidez, os limites da observação participante. Ficamos
sempre aquém da integração plena, nunca conseguimos, para usar os termos de
Raul Iturra, "despir" o nosso conhecimento cultural para "vestir" o dos observados.
Embora constitua um desafio intelectual estimulante, sabemos, e os observados
sabem, que não somos iguais. Estamos inevitavelmente de passagem, a nossa vida
não é, apesar de transitoriamente se aproximar, a deles. Ao contrário da visão,
diria romântica, da transformação do antropólogo no nativo, por via da sua longa
permanência no terreno, nunca deixei de ocupar uma posição precisa no tecido
social local, diferente dos observados e por eles reconhecido, sustentada em
algumas categorias sociológicas fundamentais, como a nacionalidade, a classe
e a etnia. Resta, o que está longe de ser escasso, o estabelecimento, entre
nós e os outros, de relações sociais baseadas no diálogo, quotidianamente nutrido
pela curiosidade mútua e pelo fascínio recíproco da diferença.
Fernando Bessa Ribeiro
UTAD (Chaves)
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