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Mendes de Carvalho - uma poesia crítica e satírica

Poeta, dramaturgo e novelista, Mendes de Carvalho (1927-1988), foi também na vida um homem de sete instrumentos, sempre muito próximo de grupos teatrais ("Casa da Comédia", "Teatro Estúdio de Lisboa e "Clube Palco"), orientou páginas literárias e colaborou em jornais e revistas literárias com poemas, artigos e ensaios sobre literatura e artes plásticas. Mas, passados treze anos sobre a sua morte, a poesia crítica e satírica de Mendes de Carvalho está hoje praticamente esquecida e os seus livros andam perdidos no silêncio das bibliotecas ou nas mãos de amigos que ainda teimam em reler os Poemas de Ponta & Mola ou as Cantigas de Amor & Maldizer, ainda e sempre na lembrança de o ouvir explicar o verdadeiro lugar de seu nascimento: "O autor nasceu no Alcaide, pequena aldeia que aparece nos mapas decentes. Ali aprendeu as primeiras letras. Na capital, as segundas, as terceiras e outras. Mas foi de facto em Lisboa que, tendo começado a sonetar antes de romper a barba, se tornou afinal anti-sonetista".

Ao contrário do que acontece com a maioria das tradicionais "cantigas de escárnio e maldizer", cujo tom satírico abdicam quase inteiramente de uma função social e colectiva, não sendo nunca uma arma de luta política e definindo-se apenas na dimensão da crítica individual e subjectiva ou mergulhando no debate ligeiro ou grotesco, a sátira na literatura portuguesa evidenciou-se com maior relevo, como se sabe, a partir do Cancioneiro Geral. Mas, sendo um dos géneros literários mais fecundos de toda a nossa criação literária ao longo dos séculos, pode dizer-se que a sátira perdeu na moderna literatura - com excepção de um ou outro caso mais evidente - quase toda a razão de ser.

Ora, Mendes de Carvalho sempre se afirmou na poesia como uma voz "discordante" e quase isolada no reino dos nossos salamaleques: poucas vezes se podem encontrar no mesmo caminho Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, Ary dos Santos ou Blanc de Portugal, sobretudo nas Odes Pedestres. Mas poucos mais poetas se contam em rigor e se devem enquadrar nesse caminho literário que, por ser limitado, tantas vezes se considera quase um "género menor" nas variadas formas de expressão. Claro, há quem não goste de se sentir acicatado com dois versos directos e incisivos para fixar defeitos, vícios ou hábitos que se ridicularizam:

Os escritores da minha geração
quarenta anos bem ou mal contados
estão todos sentados
salvo esta aquela excepção.

Mas a ironia, quando dominada e apontada com endereço e sempre destinatário certo, é ainda uma forma superior de expressão literária. E por isso na visão satírica de Mendes de Carvalho (para quando a edição completa da sua obra poética e teatral?) assistimos ao grande espectáculo do "teatro" quotidiano, porque aí tudo se denuncia nos seus poemas e o poeta o declara em voz alta, para não haver suspeitas de que assim mesmo não seja: "Denuncio os denunciantes". E essa intenção crítica, irónica e denunciadora que se espreita na sua "satírica" remonta a pontos ou sinais demasiado antigos: "Descobrimos amarelos e negros / não nos descobrimos a nós" e não se limita a sinalizar, com frieza e acuidade, os falsos vícios, as atitudes postiças e também os defeitos comezinhos de um "quotidiano" que é captado tantas vezes pelos cabelos: no fundo, a cidade (e a cidade não é só Lisboa, como se poderá pensar) assume na poesia satírica de Mendes de Carvalho uma dimensão bem demarcada de um mundo que, para o poeta, aparece realmente povoado de "camaleões e altifalantes". Ontem e hoje, claro:

Discursos encomendados e traduzidos
decorados divertidos ambaquistas
Palavras dactilografadas
improvisos ponderados
palavras dinâmicas magnéticas
Altifalam palavras.
Hora de camaleões e altifalantes.

Fala-se de tudo (e por tudo) e por nada, tem-se a língua demasiado comprida, solta ou destravada - mas lá estão os altifalantes para lhe dar a repercussão necessária, e tantas vezes ao contrário:

É comum falar de cor
e fazer afirmações
é comum ter uma cor
segundo o tempo e lugar
e como os camaleões
também é comum mudar.

O lugar comum (a palavra corrente de um linguajar ou calão citadino) surge com toda a força e carga expressiva na visão crítica, irónica e satírica do autor de A 10ª. Turista: as palavras têm de facto o seu peso, mas enquadradas no verso certo ganham um sentido que quase se reconquista em contexto diferente e sempre mais intencional. Um exemplo se pode encontrar na série de Cantigas de Amor & Maldizer, onde a "Cantiga dos Ais" revela esse tom mordaz e se afirma como uma espécie de cúpula da expressão poética de Mendes de Carvalho: mais que o ritmo ou a musicalidade dos poemas, disseca as palavras, deixa-as respirar apenas pela sua carga vocabular, seca e objectiva, conseguindo assim um efeito de ironia mais fina, directa e até acutilante:

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do antónio nobre
ais do peito e da poesia
e os ais d'outras coisas mais.

Mas os Poemas de Ponta & Mola é certamente o livro em que o poeta melhor pôde afirmar a força e virulência poética de uma posição que foi incómoda ou desgostosa para quem a assumiu em absoluta coerência e talvez por aí se entenda melhor o esquecimento a que foi votada a obra poética de Mendes de Carvalho:

País decimal em tudo
com razão ou sem razão
Dez metros prá nossa vida
e dez tábuas pró caixão.

Poeta sensível e atento às realidades da vida, nunca escondendo a amargura e desilusão pelos constantes desvios sociais, culturais ou outros, Mendes de Carvalho há muito que ganhou o direito de ser considerado como um dos poetas portugueses que, a partir da década de 50, sem se subordinar aos espartilhos de inúmeras tendências poéticas, soube definir os sinais evidentes de uma "realidade" que é muito nossa: não só a de um País decimal em tudo, mas a de uma gente que tem ainda muitos vícios e preconceitos de raiz ou de educação, que quase não gosta nada de se ver retratada em versos secos e incisivos, como pedradas que caem num charco muito lodoso, ou em versos endereçados a quem sempre teve alguns telhados de vidro.

A força expressiva de Mendes de Carvalho, na carga mordaz e satírica que sempre evidencia, espelha essa realidade humana e social que o poeta desejou corrigir ou pontuar pela sadia e firme ironia, na certeza de que não podia dizer as coisas de outro modo. E é esse o aspecto mais significativo desta poesia, porque Mendes de Carvalho habitou no mesmo mundo que pôde retratar como um poeta do seu tempo, antes e depois de Abril ter chegado. Morreu triste por não ser de todo compreendido e os anos que já passaram sobre a sua morte "explicam" sem nada explicarem como é injusto o silêncio feito em torno da sua obra poética. Mas é tempo de tudo fazermos para que o autor de Camaleões & Altifalantes, na força da sua denunciada intenção satírica, continue a nosso lado e com ele podermos assim repetir: "Descobrimos amarelos e negros / não nos descobrimos a nós".

Serafim Ferreira
Crítico literário

  
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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