Mesmo sem darmos conta, dizemos que um comportamento marcado pela maldade
é «inumano». Chegamos mesmo a exagerar o ridículo e a desprezar o sentido
exacto das palavras ao ponto de declararmos que esse comportamento é «bestial».
O equívoco é colossal: o mal é humano e é mesmo uma das características próprias
do homem, é um dos aspectos em que mais especificamente difere de outros seres.
(Luc Ferry,1997)
Não vou recordar aqui as imagens da violência brutal, do horror
e da tragédia humanitária que marcaram este início de um novo ano lectivo. Elas
estão, com certeza, de tal modo presentes em todos nós que seria um exercício
inútil. Como pode a educação responder à evidência de um mal aparentemente satânico
mas que, na verdade, denuncia o lado mais obscuro da condição humana?
A capacidade do homem para fazer sofrer, de forma intencional e planificada,
continua a surpreender-nos, constituindo um verdadeiro escândalo para a razão.
Hannah Arendt, ao presenciar o julgamento do oficial nazi Eichmann, em Jerusalém
no ano de 1963, constatou que os actos em causa eram monstruosos, mas o criminoso
que estava a ser julgado era um indivíduo absolutamente vulgar. Tratava-se de
um funcionário banal, especialmente cumpridor da lei e exibindo até uma imagem
pública de respeitabilidade. O seu comportamento durante o julgamento não revelava
estupidez, mas irreflexão. Neste testemunho, a par da ausência de pensamento
critíco revelada pelo criminoso, interessa sublinhar a sua «banalidade». Não
vale a pena enganarmo-nos com a diabolização do distante e do diferente, a maldade
está escondida no próximo e no semelhante. Está, quem sabe, no mais fundo de
nós próprios.
Acredito que a invenção de dias mais solidários e justos passa pela forma
como nos deixarmos afectar, emocionalmente, pelo sofrimento que atinge outros
seres humanos. Todavia, para que esta sensibilidade possa traduzir-se no exercício
de uma cidadania responsável, é necessário que seja acompanhada por uma reflexão
séria e paciente, incompatível com o que Bourdieu designou por «fast thinking»,
esse tipo de pensamento apoiado em lugares comuns, produzido sob pressão, na
urgência dos acontecimentos. Ao seguir pela televisão a forma como as escolas
americanas procuraram responder de imediato ao «traumatismo nacional», senti
alguma inquietação face a um discurso pedagógico assente na identificação inequívoca
do Bem e do Mal, separados por uma fronteira clara e distinta, como se se tratasse
de uma evidência cartesisana. Na anunciada guerra entre o Bem e o Mal, os meninos
americanos não terão nada a recear porque estão, naturalmente, do lado dos «bons»
e dos «vitoriosos».
Foi ainda com inquietação que acompanhei a sequência de informações sobre
o recente processo de «avaliação das escolas». É importante que a educação assuma
a centralidade que merece no debate público, mas assusta-me, mais uma vez, a
simplicidade e a linearidade dos raciocínios. Assusta-me a facilidade com que
o carácter redutor desses raciocínios se traduz em pressão sobre os professores.
Que resultados são esses? Em rigor, de que avaliação estamos a falar? As expectativas
sociais face à escola prendem-se, apenas, com o número de alunos que entram
na universidade?
Do meu ponto de vista, a relação entre ética, educação e profissão docente,
passa pela necessidade de procurar respostas para estas e outras questões. Passa
também, por acompanhar os alunos na reflexão e debate sobre, por exemplo, o
que entendemos por «crimes contra a humanidade» ou sobre a possibilidade de
um «perdão colectivo», como aquele foi recentemente reivindicado em Durban,
na Conferência contra o racismo. A educação desempenha um papel determinante
na realização da utopia do humano mas não pode, por isso mesmo, ser redutível
a uma visão instrumental do mundo e das pessoas.
Isabel Baptista
Univ. Portucalense
Referências
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Luc Ferry.1997. «O Homem-Deus ou O sentido da vida». ASA
-
Hannah Arendt. 1999. «A vida do Espirito». Instituto Piaget
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