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Graffiti: um crime de arte?

"Alguns nascem com ela. Outros nunca a encontrarão. Outros descobrem-na ao longo da vida. Para mim, foi uma estrada turtuosa que me levou a várias formas de vida: de 'hobby' em 'hobby', de "major" em "major", de trabalho em trabalho. No início dos anos noventa, dei-me finalmente conta da minha paixão."

Taeko 170, graffiter nova-iorquino

Quando nos final dos anos sessenta e princípio de setenta alguns miúdos começaram a rabiscar as paredes das casas de banho ou o interior das carruagens do metropolitano nova-iorquino, com os seus próprios nomes ou o nome dos 'gangs' ao qual pertenciam, mal podiam saber que estavam a criar uma nova disciplina no mundo da arte. Apesar do graffiti - do grego "graphein" e do latim "graffito" (desenho ou rabisco numa superfície) - ter já referências na Roma antiga, o termo contemporâneo designa a inscrição de mensagens clandestinas, sobretudo nas paredes e no mobiliário urbano, que podem ir de simples monogramas de uma cor até composições mais elaboradas e de diferentes matizes.

Susan Phillips, investigadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA)1 , define o graffiti como uma transmissão de mensagens de carácter "secreto" ou "oculto" - dirigidas a uma comunidade já familiarizada com os seus códigos e símbolos estéticos próprios - e considera-o uma forma de arte pelo facto de possuir cargas simbólicas e formas estéticas baseadas num código de grupo que ultrapassam temporalmente a existência do próprio grupo ou dos indivíduos a ele ligados. Nesse sentido também, o graffiti não deve ser entendido isoladamente mas sim como parte integrante de uma cultura de rua mais vasta que inclui música - 'hip-hop' e 'rap' - e dança - 'breakdance'.

Ainda de acordo com aquela investigadora, o graffiti é uma arte culturalmente cruzada que pode dar origem a três géneros de expressão: o graffiti político e social, que se pode combinar com outras formas de expressão gráficas como fanzines, murais ou mostras de arte, representando o trabalho de indivíduos ou grupos políticos contestatários; o graffiti dos "gangs", utilizado por estes grupos de rua como marcas territoriais nas áreas urbanas, associadas a outras formas acessórias de arte como tatuagens ou estilos de roupa que identificam "práticas sociais e económicas ilegítimas" que vão além do graffiti propriamente dito; e finalmente o género de graffiti mais difundido: o chamado "estilo Nova York", ou "Hip-Hop" (termo que deriva do género musical), que se espalhou pelas cidades norte-americanas e pelo resto do mundo, sobretudo na europa, a partir dos anos 70.

Não se sabe exactamente quando o graffiti contemporâneo se tornou uma arte no sentido estrito do termo. Talvez a partir do momento em que transpôs as ruas e passou a poder ser apreciado nas galerias de arte ou em colecções particulares, mas o facto é que teve origem e se desenvolveu nas zonas degradadas da cidade de Nova York. No início eram apenas assinaturas ('tags') feitas em locais públicos com boa visibilidade, prática que originou o termo 'Writer' - não literalmente escritor, mas mais qualquer coisa como rabiscador. "Taki 183", pseudónimo de um nova iorquino de ascendência grega que se notabilizou por ter sido o primeiro a espalhar de forma sistemática o seu 'tag' pelo espaço urbano, chegou inclusivamente a ser entrevistado por jornais como o "New York Times".

A partir dessa altura o movimento não parou e deu origem a formas aperfeiçoadas de 'tags', que foram evoluindo para formatos maiores, trabalhados em várias cores, até se chegar às autênticas telas ('pieces' - termo abreviado que deriva da palavra "masterpiece", ou obra de arte) de rua que se podem apreciar em várias cidades do mundo. Algumas delas podem ser vistas em sites como www.artcrimes.com, onde se percebe porque razão o grafitti, como argumenta Susan Phillips, pode ser entendido como uma forma de arte.


Arte ou um crime?

É neste contexto que, mais do que se legitimar como uma forma de arte - a partir do momento em que artistas como Keith Haring transpuseram as suas obras clandestinas para galerias e colecções particulares dos Estados Unidos essa deixou de ser uma preocupação - a discussão se centre actualmente em questões mais particulares tais como se o vandalismo (como o graffiti é encarado do ponto de vista legal) pode ser considerado uma forma de arte ou se o graffiti poderá continuar a ser entendido como tal se for feito numa base legal.

"Legalizar o graffiti através da criação de muros especificamente destinados para a pintura não é a solução, porque há-se haver sempre quem queira pintar em locais "ilegais", explica "Biph" (leia-se bif), pseudónimo de um 'writer' do Porto. Ao seu lado, "Odd", uma das poucas raparigas que na cidade integra um grupo de 'writers", ou 'crew', refere que a ilegalidade é a sua própria "essência" e que regulamentá-lo seria destrui-lo. Ou como argumenta "Neck", pseudónimo de um dos mais conhecidos graffiters alemães: "a pintura ilegal faz parte desta cultura".

A apropriação do espaço público como meio de divulgar mensagens é em tudo semelhante aos murais de rua que se desenvolveram com a revolução russa de 1917, cujo "leit-motiv", porém, residia na mensagem política, e se estenderam ao longo das décadas a países como Portugal. Mas ao contrário do que acontecia nos anos anteriores e após a revolução do 25 do Abril, os murais em Portugal deixaram praticamente de ter uma conotação política e passaram a estar associados a imagens e mensagens generalistas e/ou individualistas, como é o exemplo do graffiti. "Essa mensagem política perdeu-se porque se calhar também se perdeu um pouco da consciência política que caracterizava esse período", opina odd. "Não faz sentido confundir grafitti com murais, nomeadamente políticos, já que o grafitti restringe-se habitualmente ao espaço que rodeia o "writer. A única semelhança é estarem pintados numa parede ", diz.

Mas as diferenças entre os murais e o graffiti não se restringem apenas ao nível do conteúdo. As técnicas também mudaram: da tinta e do pincel passou-se ao 'spray', mais limpo, rápido e fácil de camuflar do que os primeiros. Com as latas de 'spray' desenvolveram-se igualmente os apetrechos que permitem criar diferentes estilos de pintura - em tudo semelhantes aos diferentes tipos de pincéis utilizados nos murais -, que se encontram incorporados nos vários aerossois à venda no mercado: os difusores de tinta, ou 'caps', que podem ser adaptados conforme se pretenda desenhar um traço mais largo ou mais fino. Em alguns países onde esta arte está mais divulgada, o mercado de 'caps' pode ser bastante lucrativo.

Curiosamente, e de acordo com a definição que lhe dá Susan Phillips, usar tinta ou dispôr de uma parede não constitui uma limitação à produção de um graffiti. Um nome ou um ícone desenhados a dedo numa janela ou parede sujas pode igualmente ser entendido como tal, a partir do momento em que se faz uma "tentativa de criar uma composição coerente". Afinal, o objectivo primordial do grafitti é "ter um estilo", explica "Biph". "Não um estilo em vão, mas um estilo pessoal que se reflecte naquilo que se faz", "Odd", por seu lado, define o graffiti como uma "motivação" para "melhorar os espaços degradados das cidades" e "personalizar o espaço que nos rodeia". Então, porque razão proliferam mais 'tags' (vistos pela maioria das pessoas como apenas rabiscos) do que pinturas que acrescentem forma e cor à paisagem urbana? "As pessoas hoje em dia têm falta de senso comum e abusam do seu poder, neste caso do poder de transmissão de uma mensagem" explica biph.

Uma "abuso de poder" com a qual Cândido Coutinho, escultor, projectista e entusiasta da arte pública, não concorda. "Um mural seria um bom pretexto para, no âmbito da arte pública, que agrupa diversas correntes e expressões, valorizar o património e a paisagem". Porém, "os rabiscos que se vêm pela cidade são tudo menos isso". Tal como acontece com os murais de azulejo, que são encomendados para embelezar o espaço público, a pintura, na sua opinião, poderia ser um excelente veículo de promoção estética do espaço urbano e não-urbano. Para tal, diz, seria tão só necessário regulamentar a actividade e dotá-la de regras, como concursos de ideias, e locais próprios para as executar.


O factor adrenalina

Ao longo dos tempos, só um aspecto se manteve inalterável nas pinturas murais, independentemente do seu género: a perseguição das autoridades - baseada, claro está, na legislação vigente - a quem não procura mais do que trazer um pouco de arte ao quotidiano cinzento das cidades. Foi o que se verificou numa noite em que surgiu o convite para acompanhar a realização de uma pintura. O cenário era um muro de quase vinte metros numa das ruas mais movimentadas do Porto, e, portanto, onde seria difícil camuflar a actividade. O grupo encontrou-se às três da manhã com elementos de um outro colectivo que tinha pintado o muro ao lado na semana anterior. O motivo era comum: chamar a atenção para a progressiva degradação de uma casa do início do século XX, que estará, ao que tudo indica, prestes a sucumbir à pressão imobiliária.

Ao todo, reunem-se para cima de vinte pessoas no pequeno largo fronteiro ao local da realização do trabalho. Cerca de metade irá vigiar as ruas circundantes de forma a poder alertar, via telemóvel, da passagem da polícia. Um dos elementos do grupo percorrerá de mota cada um dos postos de observação para garantir que nada falhe. Outros ainda vão filmar a pintura, cuja mensagem ("Um dia a cultura vem abaixo") alude ao facto de a preservação do património - numa altura em que o Porto é uma das cidades capitais da cultura - também poder ser uma forma de cultura.

Por volta das 03,30 dá-se início ao trabalho. Tudo está perfeitamente organizado: enquanto um desenha os contornos das letras, outros dois preenchem o interior e um quarto dá o contorno definitivo a negro. Dá a impressão de se tratar de operários numa fábrica de imagens, tal é o método e a precisão com que trabalham. A certa altura um dos telemóveis toca. "Vem aí a polícia!", alguém alerta. Nessa altura cada um foge para onde pode e atira-se as latas de spray para o interior do quintal da casa como forma de fazer desaparecer as "armas do crime". Depois da adrenalina, retoma-se o trabalho como se nada se tivesse passado.

Quase no final, acertam-se os pormenores e dão-se os toques finais na autêntica tela em que se transformou um muro cinzento e gasto. A operação poderia ter sido mais simples não fosse o facto de os artistas terem sido alertados durante seis vezes para a passagem das autoridades policiais, duas das quais se revelaram ser falsos alarmes. No Porto, conta Biph, a polícia não é tão incisiva como na capital. Em Lisboa, explica, "têm um ficheiro com os murais e os nomes dos autores". A arte desenvolveu-se a tal ponto na capital que existem artistas estrangeiros a apreciar o trabalho que por lá se faz e haja quem, como o líder do partido Popular, Paulo Portas, proponha a criminalização desta actividade.

Se no princípio era difícil, senão quase impossível, comprar latas de 'spray' em quantidade e em diferentes tonalidades - "por vezes era necessário encomendar e esperar durante semanas para que chegasse material", refere Biph - e a alternativa era recorrer aos sprays de automóvel que se vendem nas drogarias e hipermercados, a partir de meados dos anos noventa, e principalmente em Lisboa, o mercado de aerossois destinados à pintura de rua começou a vulgarizar-se e é hoje um negócio em ascenção. E que prova que o graffiti está longe de acabar.

De facto, é crescente o número de clientes que utilizam esta técnica para embelezar o interior ou o exterior de estabelecimentos comerciais. Muitos 'writers' fazem dela, inclusivamente, uma actividade remunerada e lucrativa. Mas o reconhecimento público não se fica por aqui. Recentemente, "Biph", "Odd" e outro amigo pintaram, sob encomenda do conselho directivo, uma parede lateral de um pavilhão pré-fabricado de uma escola secundária da cidade. "Foi uma sensação fantástica saber que podíamos estar à vontade e que não estávamos a fazer nada de errado".

1 "Graffiti Definition: The Dictionary of Art", Phillips, Susan, London: Macmillan Publishers

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Ricardo Jorge Costa

  
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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