Não é fácil nem cómodo para Portugal, por ter sido o
introdutor da sua língua nos povos colonizados e, através dela, ter exercido
o seu domínio, exaltar as virtualidades do Português como um meio importante
do estreitamento das relações dos falantes - e não parecer que assim está a
resgatar-se de negligências cometidas no passado ou a querer tirar proveito
das relações que, hoje, a língua continua a propiciar.
É, de facto, uma situação incómoda: se Portugal se demarcasse do destino da
língua portuguesa no mundo onde é falada, não faltaria quem o acusasse de apenas
se ter servido dela enquanto fora instrumento de exploração colonial; se mostra
demasiado empenho na sua expansão onde a língua portuguesa coabita e "compete"
com as línguas nacionais, é suspeito de intenções neocolonialistas ou de
procurar ressarcir-se dos "pecados históricos", no dizer de Antero de Quental.
Este "dilema" só existe, obviamente, em relação aos povos africanos que
recentemente ascenderam à independência e que, justamente, procuram firmar,
por todos os meios, a matriz das suas identidades nacionais, desligando-se,
tanto quanto possível, dos vínculos coloniais que de algum modo possam afectar
a emergência dessas identidades reconstruídas. Tal questão nunca se colocaria
em relação ao Brasil, não só porque já antes da independência jurídica, alcançada
em 1822, se prefigurava como país autónomo do projecto (ou não-projecto) colonial
da Metrópole, como também pela existência de uma língua nacional politicamente
unificadora e não exposta aos questionamentos que se põem em Angola ou Moçambique,
por exemplo, onde com o Português, assumido como um meio de unidade nacional
apenas por uma minoria da população, concorrem línguas nacionais maioritárias.
Naquelas duas ex-colónias de Portugal, a questão está ainda em fase de processo
que ninguém, hoje, poderá prever quando será concluído, pela sua dependência
de factores que são insensíveis à necessidade de, num certo prazo, proclamar
uma língua "geral". São esses factores os sentimentos autonómicos, que
a guerra civil exacerbou, dos diversos povos - que se consideram "nações"
- constituintes do País institucional, nos quais as línguas próprias (e
só em Angola há uma dezena, sem atender aos dialectos), como expressões e veículos
de culturas, problematizam tudo quanto possa apontar para uma "unidade" que
não satisfaça todas as "partes".
Em 1977, num discurso proferido na União dos Escritores Angolanos, dizia o então
Chefe do Estado angolano e poeta, Agostinho Neto, que "o uso exclusivo da língua
portuguesa, como língua oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa
literatura, não resolve os nossos problemas. E tanto no ensino primário como
provavelmente no médio será preciso utilizar as nossas línguas. E dada a sua
diversidade no país, mais tarde ou mais cedo, deveremos tender para a aglutinação
de alguns dialectos, a fim de facilitar o contacto." Mas logo a seguir, Agostinho
Neto não iludia os condicionalismos: "Todo o desenvolvimento do problema linguístico,
naturalmente, dependerá também da extinção das barreiras regionais, da consolidação
da unidade nacional, da extinção dos complexos e taras herdadas do colonialismo,
e do desenvolvimento económico." (Não teria pensado ainda nos insucessos das
línguas compósitas, como o "Esperanto" na Europa e o "Afrihili" no Gana).
Quase decorridos vinte e cinco anos sobre este desiderato, Agostinho Neto, se
fosse vivo, diria certamente a mesma coisa, porque, entretanto, os condicionalismos
de 1977 se apresentam hoje agravados. Mas já com uma diferença: é que são hoje
mais os falantes de Português do que eram no seu tempo e nunca o Português foi
tão útil para a comunicação entre os povos deslocados pela guerra e que multiplicaram
a população das cidades protegidas, com as suas escolas, onde a língua neutra
que esbate as "barreiras regionais" é o Português, embora cada vez mais transformado
pelos avatares de um quotidiano que mal preserva o ôntico e reduz a operacionalidade
da língua às necessidades essenciais da sobrevivência.
Preleccionava Amílcar Cabral aos seus guerrilheiros, nas matas da Guiné: "Temos
que ter um sentido real da nossa cultura. O português é uma das melhores coisas
que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais, senão um
instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento,
um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo."
No Brasil, em 1925, quando as correntes vanguardistas consubstanciavam um Movimento
Modernista proclamado três anos antes, que partira de um radicalismo linguístico-cultural,
um dos seus fundadores, o poeta Mário de Andrade, escrevia a outra poeta vanguardista,
Carlos Drumond de Andrade: "... Estou num país novo e na escureza completa duma
noite. Não estou pitorescando o meu estilo nem muito menos coleccionando exemplos
de estupidez. O povo não é estúpido quando diz 'vou na escola, me deixe, carneirada,
mapear, besta ruana, farra, vagão, futebol'. É antes inteligentíssimo nessa
aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações
e contactos com outras raças, das necessidades do momento e de adaptação, e
da pronúncia, do carácter, da psicologia racial, modifica aos poucos uma língua
que já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências
e as transformará numa outra língua, que se adapta a essas influências."
Pois seja assim, enquanto os povos quiserem. Nenhum povo é dono da língua que
outros adoptaram e cada povo tem o direito de fazer da língua adoptada o que
bem entender, tornando-a "sua", sem complexos tributários nem reserva de direitos
de origem.
O que Portugal e o Brasil, como dois países social e linguisticamente "formatados",
que possuem, em função do passado histórico, muitas coisas em comum com
os outros membros da comunidade lusófona, é demonstrar que lhes podem ser úteis
e que de uma congregação de solidariedades (culturais, científicas, económicas
ou políticas) todos terão a ganhar.
"Pro bono pacis, pro bono publico" - tudo em nome do futuro, sem ressaibos
"parricidas", orgulhos chauvinistas ou humildades pacóvias.
Leonel Cosme
investigador
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