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Júlio Conrado - ou o "charme" do romance policial

Abro o ecrã em branco do meu "Compaq", entro no Windows/98, que ainda não domino na perfeição, longe de mim está o e-mail, o fax ou as net's deste mundo e do outro, não queriam mais nada, e estou disposto a escrever no processador de texto, em queda livre e ao correr do que me sair, o que me apetece dizer depois da leitura deste policial Desaparecido do Salon du Livre, e digo para começar: "Boa malha, Júlio Conrado!" Porque desta vez, sim, encheste-me as medidas com a tua prosa enxuta, desenvolta e malcriada q. b., mas marcada por um "charme" e uma ironia sobre a "coisa cultural" que mete escritores medÌocres e damas de alta roda, detectives privados e experientes como Joel Boaventura que nasceu para isto, não há dúvida, mas não sei ao certo que mais salientar, se a intriga policial e irónica de um meio literário a cair de podre ou se coloco nos pÌncaros da lua o atrevimento delicado e sabido de Diana ou de Sossara, as intenções de Morales ou ainda os medos de Aureliano Viegas, sempre na memória de serem muitos os nomes que são chamados a esta função de servirem como pano de fundo a uma boa história quase sem história, ou cujos cordelinhos se detectam logo à má-fila, e a verdade é que evocando Saramago, Sena, Ramos Rosa, Aleixo, Tavares e outros, o que se destaca nas entrelinhas ou nas subentendidas referências culturais é ainda essa espécie de ajuste de contas, oportuno e verrinoso, com um meio adulterado por entre histórias de saias e cornos, é sempre a mesma coisa, como a par e passo o perspicaz detective Joel Boaventura, num saber longo de experiência feito e sempre muito bem pago, e disso ele se orgulha, desfia os nós e os laços de uma intriga que faz soltar a risada a cada passo ou leva a entender como tu, Júlio Conrado, soubeste urdir um romance a partir de uma breve e simples história de amor. Mas receio pelos amargos de boca que te esperam. O meio é pequeno e a gente dele não é grande, e aqui decido parafrasear o Garrett quando assim falava das gentes do Porto, sem todavia pensar que a cidade ainda havia de ser a capital da cultura e dele nunca se esquecer, como é dos livros, mas o certo é que vais, ai que não vais, meu caro Júlio, suar as estopinhas por este atrevimento, e não queria estar na pele de alguns em que deixas cair uma malhoada subtil e certeira, mas é esse o ponto da questão, quem anda à chuva molha-se, eu sei, e entra bem aqui este provérbio como os muitos de que te serves a talhe de foice e sempre no momento certo, numa estratégia literária que faz com que este teu romance se deva ler de modo aberto e atento, nos altos e baixos da sua própria intriga romanesca, mas na certeza de que literariamente atingiste o alvo e este livro, talvez mais do que outros, ao sabor da escrita e colocando por mim as mãos no fogo, te afirmo e reafirmo, no modo assim escorrido de falar deste último romance, que conseguiste fazer, na justa dimens?ão do tempo narrativo, um livro que se lê de um jacto e provoca o prazer da leitura como o não tenho pelas páginas tão badaladas de livros e autores que andam por aÌ na crista da onda ou tudo fazem para se erguerem em bicos dos pés na expectativa de um prémio ou de uma crÌtica elogiosa dos amigos que só os enaltecem e não têm olhos para mais ninguém. Não queriam mais nada. De mim, nem sequer lhes refiro os nomes, e dos seus livros, sabes, meu caro Júlio, faço como alguém dizia na primeira República que já está bem longe e Raul Brandão disso fala nas suas Memórias: "Não os leio nem empresto!"
E, aqui chegado, sabes, não sei bem o que mais dizer-te acerca deste tão conseguido romance que é Desaparecido do Salon du Livre. E não é pelo teu excesso de francesismos, claro que não. Estão todos eles muito certos para dar o clima do livro. Mas é sobretudo pelo sentido da sua clara e propositada ironia e pela escrita desataviada como o soubeste realizar. Uma pedrada no charco, sim, para alguns que andam por aÌ a fazer profissão de fé como "escritores policiais" e só gastam palavras palavras palavras com histórias de lana-caprina que nem ao menino Jesus interessam. Olha, meu caro Júlio, no acto de concluir esta nota crÌtica ao teu romance, talvez inesperada mas de acordo com o tom e o espÌrito do teu livro, isso sei, apenas te posso dizer que lamento não ter eu esta ideia de escrever um romance num ritmo narrativo que empolga até à última página. Deves estar satisfeito, pois, nesta altura em que também acabas de publicar o romance De Mãos no Fogo (Ed. NotÌcias), que ainda me não cativou na linha da tua prosa de ficção mais dura e menos ágil, ou o livro de crÌticas e ensaios Ao Sabor da Escrita (Ed.Universit·ria), em que recuperas textos perdidos ou esquecidos em revistas e jornais para dizeres o que pensas de outros livros e autores (VergÌlio Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Orlando da Costa, Fernanda Botelho, Maria Estela Guedes e falares ainda de muitos poetas. Mas deste teu atrevimento de trÍs livros quase simult?neos digo que me fica a nÌtida e boa impress?o de com o Desaparecido do Salon du Livre teres encontrado talvez um outro rumo para a tua escrita de ficção. É o que penso, e a mais não sou obrigado.

Serafim Ferreira

Júlio Conrado
DESAPARECIDO DO SALON DU LIVRE
Ed. Bertrand / Lisboa, 2001.


  
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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