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Ética e identidade profissional docente

Nos tocó un tiempo difícil de cuestiones, de pocas reflexiones
Donde ciertas decisiones nada tienen que ver com las razones
Nos tocó un tiempo difícil, pero estamos en este viaje
y yay que armarnos de paciencia, yay que armarnos de corage
para poder resistir, el embate de existir (...)
Este tiempo necesita nuestra mano,
se procurarmos juntos lo haremos mais temprano

(Júlio César Barbosa, "Este tiempo", Barcelona 2001)

Tocou-nos, de facto, um tempo difícil. Um tempo iluminado pelo brilho da ciência e da tecnologia mas, tristemente, obscurecido pela constatação de que o sofrimento que atinge o homem na sua humanidade continua a ter a marca do próprio homem. Tocou-nos um tempo violento, desencantado e incerto. Um tempo sem tempo.
Num tempo assim, como levar por diante a enorme responsabilidade de ser educador? Que valores devem configurar hoje a identidade profissional docente?
A identidade profissional dos professores, como qualquer outra identidade, não pode ficar imune à trama do tempo. Conforme tive oportunidade de referir noutro texto, seja no plano individual ou colectivo, a identidade pressupõe sempre uma relação dinâmica com a alteridade, mas isso não pode significar indeterminação ou aleatoriedade. Pelo contrário, pensada a partir das ideias de abertura e de dinamismo, a identidade apela, inevitavelmente, a uma decisão sobre os eixos que devem estruturar o processo da sua construção(2001).
No seguimento desta preocupação, a Ética, ou mais precisamente a Deontologia, tem sido muitas vezes reclamada como um dos eixos estruturantes da identidade profissional docente. A educação assenta numa prática de relação humana o que, só por si, justificaria o estatuto ético e moral da profissão. Mas acontece que esta não é uma relação inocente, ela obedece à intenção de intervir na vida de outras pessoas, procurando influenciar positivamente o seu percurso de desenvolvimento. Daqui decorre um poder e uma responsabilidade impossíveis de alienar e, do meu ponto de vista, irredutíveis a uma codificação de regras de conduta profissional.
Afasto-me assim daqueles que advogam que a credibilidade de uma profissão persistentemente ferida na sua autoridade, e na sua dignidade, depende do reforço da sua base normativa. Sobretudo, como denuncia David Carr, quando se atribui a base normativa do conceito de profissão ao sistema de príncipios éticos, essencialmente expressos em termos de deveres e obrigações (2000). Pertenço ao grupo dos que defendem que o Estatuto da Carreira Docente, com todos os seus limites e ambiguidades, é ainda o instrumento privilegiado para a definição de regras reguladoras do exercício profissional e acredito, por outro lado, que a multiplicidade de exigências éticas que se colocam aos educadores neste tempo difícil apela, sobretudo, ao desenvolvimento das suas competências decisionais, necessárias para intervir em contextos singulares, complexos e imprevisíveis.
As exigências que se colocam hoje aos educadores reclamam um pensamento necessariamente crítico e alternativo, próprio de um intelectual autónomo e reflexivo. Ora esta é uma lógica incompatível com um discurso corporativista e redutor no sentido em que o intelectual é muito mais do que um membro de um grupo de especialistas. Como refere Bauman, ser um intelectual significa desempenhar um papel especial na vida da sociedade no seu todo (1995). Ou seja, enquanto intelectuais, os professores deverão ser capazes de transcender a esfera dos seus interessses particulares e dos interesses do seu grupo. Deverão, por exemplo, comprometer-se no processo de reflexão e discussão sobre o desenvolvimento humano, precisamente o tema proposto para este número da Página.
Julgo, pois, que é no plano da Ética, do lado da reflexão e da critica, e não tanto no plano da Moral, ou da Deontologia, que deve ser equacionada a responsabilidade profissional docente, conforme procurarei explicitar em textos posteriores. Até porque, como lembra Lipovetsky, a adesão a códigos funciona muitas vezes apenas como instrumento de marketing e de cosmética, ao serviço de uma responsabilidade indolor (1994).
Alicerçada numa cultura de exigência, a responsabilidade profissional dos docentes deverá ser uma responsabilidade dolorosamente comprometida e afectada, sensível aos acontecimentos que marcam o mundo e a vida dos homens.

Isabel Baptista
Universidade Portucalense
Referências
  • Baptista, Isabel. 2001. "Educação Social: um espaço profissional com valor e com sentido" In Espaços de Construção de Identidade Profissional. Porto. Universidade Portucalense.
  • Bauman, Zygmunt. 1995. Life in Fragments. Oxford UK. Blackwell.
  • Carr, David. 2000. "Obrigações Profissionais e Direitos Humanosª In A Educação e os Limites dos Direitos Humanos. Adalberto Dias de Carvalho (Org.) Porto. Porto Editora.
  • Lipovetsky, Gilles. 1994. O Crepúsculo do Dever. Lisboa. Dom Quixote.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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