O vetusto edifício havia resistido às crises do Império, aos
bombardeamentos da Segunda Guerra e à especulação imobiliária. As suas imponentes
colunas erguiam-se acima das copas de árvores centenárias. O seu harmonioso
enquadramento na verdura do parque, transportava o visitante à Viena de Mahler
e Stauss.
No átrio, três enormes telas prenderam-me a atenção. Do lado esquerdo, a figura
austera do Imperador Francisco José. Na tela da direita, a delicada fragilidade
da imperatriz. Entre ambos, um quadro que reflectia um desgaste de séculos.
A luz do sol, ainda que filtrada, esbatera os tons vivos, restava a pálida dignidade
da figura: um homem de ar grave e dócil postura.
Quem seria? Que feitos lhe granjearam a honra de estar ladeado de imperadores?
Talvez um relevante político austríaco do século XVIII ou XIX, talvez um pedagogo
austríaco de nomeada (dado que o edifício albergava uma famosa escola). Aproximei-me,
coloquei-me em posição de leitura da inscrição em letras góticas douradas. E
ali estava um nome quebrado pelas fendas que o tempo imprimiu no verniz: Jacob
Rodrigues Pereira. Senti que um insuspeito patriotismo se apossava de mim.
E quase entoava "A Portuguesa"...
Ao meu lado, professores de outros países liam a esbatida inscrição do quadro
e interrogavam-se sobre quem seria aquele personagem. Antes que o cicerone se
adiantasse, eu respondi - confesso que com uma pontinha de orgulho... - tratar-se
de um pedagogo português, que viveu no século XVIII e que dedicou a sua vida
à investigação e educação de crianças surdas-mudas.
Para alguns visitantes, tão ávidos de informação como reverentes perante o relevo
concedido pela instituição ao dito pedagogo, acrescentei - em inglês e em francês,
como mandava a circunstância - mais algumas curiosidades. Que, perante os prodígios
operados por Jacob R. Pereira, o rei Luís XV lhe concedera uma pensão avultada,
que uma academia francesa se rendera aos seus méritos, que fora repetidamente
elogiado por sábios como Buffon, que o pedagogo português - e eu sublinhava
a palavra "português" - publicara (em 1762) o estudo "Observations sur les
sourds-muets", que...
Entretanto, o cicerone referia estar Jacob Rodrigues Pereira sepultado no cemitério
hebraico de Villette, em Paris. E algo se partiu cá dentro.
Talvez inconscientemente, eu ocultara a dura realidade da diáspora judaica.
Jacob Pereira, português, natural de Peniche, fora forçado a fugir de Portugal,
para escapar às garras da Santa Inquisição. E apercebi-me de que esta explicação
estava a ser dada em alemão (língua que, por mais que tente, não entendo), pelos
olhares indignados que sobre mim pousavam.
Calei-me. Senti-me penitente de pecados que não cometi e herdeiro de ignomínias.
Caía inteiro sobre mim o peso do opróbrio, uma maldição que sucessivas gerações
não apagaram. Efectivamente, o nosso país foi berço de génios que não mereceu,
desde os filósofos judeus que se refugiaram nos Países Baixos até aos que, não
sendo judeus, foram eles próprios e pagaram pela ousadia.
Outra dura realidade emergiu do desencanto. Ali estava eu, português, professor,
a reivindicar glórias pátrias. Mas, a mais de dois mil quilómetros de distância,
quantos portugueses, quantos professores conheceriam sequer o nome e a obra
de tão insigne pedagogo?
Há mais de duzentos anos, Jacob Rodrigues Pereira disse, por exemplo, o que
Piaget haveria de repetir muito mais tarde: que a inteligência (também) passa
pelos sentidos. Sem retirar importância à obra de Piaget - em pormenor abordada
em compêndios e sebentas - alguém saberá explicar por que se ostraciza o
que é nacional... e bom?
Talvez a época estival opere tal letargia que me impeça de estender por quilómetros
(o que é meu hábito...) o que pode ser dito em duas linhas. Pois por aqui me
quedo, com o desejo de que tenhais umas retemperadoras férias. Ou como me dizia,
há dias, a Joaninha, aluna de uma primária à moda antiga:
"A minha professora, coitadinha, está mesmo a precisar de férias. Berra
tanto que bem precisa de descansar".
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
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