A Ana encontra-se às portas da Universidade. O João vai continuar
a arrastar-se como aluno auto-proposto pelas salas de exame. A depressão da
Deolinda acentuou-se. A nota de Biologia do Celso talvez o venha a impedir de
entrar em Enfermagem. A Sónia decidiu repetir Matemática na segunda fase. Os
pais da Teresa adiaram a ida para o Alentejo, em Agosto. A mesa de trabalho
do Correia encontra-se inundada com os exames de alunos seus, à procura de mais
umas décimas redentoras.
O mundo, a partir do qual construímos as crónicas escolares, continua, como
se vê, a fervilhar. Um mundo absurdo, porque o seu sentido se esgota nas fronteiras
do academicismo da Escola. Um mundo, cujos fundamentos muitos continuam a pretender
salvaguardar, em nome da exigência e do rigor, apesar desse mundo se construir
sobre uma evidente falta de rigor que o convencionalismo epistemológico ilude,
o comodismo político não enfrenta e os costumes pedagógicos perpetuam.
Decidimos, por isso, de hoje em diante, eleger a exigência e o rigor académicos
como o tema dos textos que, nos tempos mais próximos, iremos subscrever neste
mensário. Fá-lo-emos a partir de respostas perdidas no correio dos leitores
de alguns dos jornais da nossa praça. Fá-lo-emos, também, a partir de episódios
e de testemunhos públicos de professores ou de alunos que nos permitam compreender
que esse rigor e essa exigência não são conceitos estranhos a algumas escolas
e a muitos docentes, embora estes não os confundam com o número de alunos que
entram na Faculdade de Medicina ou a classificação de um estabelecimento de
ensino num qualquer ranking académico. Tornar-se-à possível confrontar,
assim, a falsa respeitabilidade das pautas vermelhas com a realidade que as
mesma iludem. Tornar-se-à possível enfrentar os discursos daqueles que, a pretexto
da necessidade de se premiar o esforço e o mérito individuais, apenas visam
justificar o desinvestimento cómodo em que alguns se instalaram ou ocultar os
propósitos políticos e ideológicos que parecem animar muitos dos que têm vindo
a participar em tal cruzada.
Exigência e rigor são pois conceitos a problematizar, quanto ao que significam
e às implicações sociais e educativas que pressupõem. A exigência e o rigor
numa escola que visa promover a selecção académica obedece a parâmetros necessariamente
diferentes dos de uma escola que visa funcionar como um espaço de afirmação
de uma cidadania de natureza democrática. Esta não é menos exigente do que aquela.
Bem pelo contrário. Nem tão pouco pode ser menos rigorosa, sob pena de iludir
o projecto educativo que a anima ou de abrir as portas a processos de discriminação
académica que se distinguem das abordagens mais tradicionais e elitistas, apenas
porque tentam ocultar o próprio processo de discriminação que permitem e favorecem.
Os textos que pretendemos redigir obedecem, então, ao propósito de relançar,
a partir das temáticas da exigência e do rigor, um debate em torno quer dos
actos e dos gestos relativos ao acto de ensinar quer dos actos e dos gestos
relativos ao acto de aprender, bem como dos processos de interacção e mediação
pedagógica que os permitem. São esses gestos e esses actos que importa olhar
de forma mais cuidadosa e atenta. Que importa perscrutar para além das evidências.
Tentaremos fazê-lo como o fizemos até agora, modelando as narrativas em função
das palavras eleitas, as quais, neste caso, poderão ser, de acordo com o propósito
que nos anima, as palavras exigência, rigor, inclusão e aprendizagem, tal como,
no caso das crónicas que hoje encerramos, se torna possível encontrar o rasto
de outras palavras que inundam os escritos sobre a Escola: sofrimento, escolástica,
mal-estar, alunização dos jovens ou profissionalismo docente.
Segundo Almada, vivemos num tempo em que temos de inventar as palavras que já
foram inventadas. Mas como é que se pode apreender a dimensão de uma palavra
como dignidade através da palavra dignidade ou de qualquer outra palavra a construir
? Como é que se pode compreender a dor através das três letras justapostas que
compõem a palavra dor ?
E se as crónicas nasceram do reconhecimento dos limites das palavras, já as
narrativas, a construir, irão emergir, antes, da rarefacção a que se encontram
sujeitas as palavras exigência e rigor. Irão emergir da ambiguidade com que
são utilizadas ou do ruído comunicacional que suscitam. E embora saibamos que
não há uma abordagem neutra e inequívoca das palavras, também sabemos que é
só através das palavras que se torna possível elucidar os jogos de poder que
as mesmas tanto proporcionam como estimulam. Rigor e exigência não são, por
isso, palavras definitivas e inequívocas. Abrigam atrás delas uma pluralidade
de sentidos que nos importa redescobrir através de um olhar curioso a que as
narrativas e os textos, a publicar nos próximos meses, pretendem vir a conferir
uma forma.
Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto
|