Apenas com duas breves estadias no continente africano, em
Marrocos, a expectativa aumentava à medida que o avião perdia
altitude para fazer uma aterragem suave no aeroporto de Joanesburgo. Pela janela
do lugar que ocupei desde Londres, obtive a primeira impressão da África
do Sul ? em redor do aeroporto, localizado nos subúrbios da enorme cidade
sul-africana, a paisagem é dominada pelas moradias individuais, quase
sempre equipadas com piscina.
Cumpridas as formalidades alfandegárias e recolhida
a bagagem, dirigi-me para a área pública do aeroporto. Apesar
de estar no outro lado do continente, numa África muito diferente, o
cenário repete-se ? não têm conta os jovens negros que procuram,
à semelhança do que vivi em Marrocos, um viajante para o ?auxiliarem?
em troca de alguns dezenas de rands. A mim tocou-me um que se apresentou como
estudante do Ensino Superior, trabalhador informal nas horas livres. Com um
desembaraço a toda a prova, de imediato tomou conta da mala e, em certa
medida, de mim. Enfastiado de aviões, a sua presenÁça ajudou-me
a repor o plano inicialmente pensado, à revelia dos avisados conselhos
dos meus amigos moçambicanos: viajar de Joanesburgo para Maputo em autocarro.
A aventura começava... Longe de ter quaisquer simpatias
por ideologias da insegurança e ventos punitivos soprados dos Estados
Unidos da América, as notÌcias, quase diárias, da criminalidade
na África do Sul não poderiam deixar de me afectar. Acabaria,
muito rapidamente, por descobrir que a realidade ultrapassava as minhas piores
projecções. No percurso do aeroporto para a estação
de autocarros, no centro da cidade, dificilmente se observa uma casa sem sistema
de alarme ostensivamente presente. Chegado à estação, a
presença policial, sempre privada, é quase asfixiante. Se, por
um lado, sossega as inquietações do europeu branco recém-chegado,
por outro, diz-nos que algo não vai bem no paÌs de Mandela.
Eram as 10 horas locais, quando me confrontei com a autoridade
do tempo ? o autocarro, o único do dia, tinha partido às 8. Óptimo;
um dia livre pela frente. Contra as minhas expectativas, passei o dia metido
no hotel, em regime de reclusão imposto pela força das circunstâncias.
Apesar da imensa vontade de dar um passeio pelo centro de Joanesburgo, os avisos
veementes do meu ?guia?, os conselhos desincentivadores do gerente do hotel
e, sobretudo, o exemplo do zambiano negro, pequeno comerciante de diamantes
e pedras preciosas na sua Lusaka, também recluso, foram elementos suficientes
para me impor contenção e chamar à razão.
No dia seguinte, a saÌda de Joanesburgo ofereceu-me
uma outra vista, assaz fugaz como impressiva, sobre a cidade: o centro parece
saÌdo da nova idade média imaginada por Umberto Eco, com os edifÌcios
comerciais transformados em verdadeiras caixas fortes, não raro encerrados;
nas ruas, entregues aos pobres, o trânsito automóvel era escasso
e os brancos estavam totalmente ausentes; já fora da cidade, os meus
olhos enchiam-se com a visão apocalÌptica de sucessivas town
ships, espaços e sÌmbolos de um passado ignominioso que, contra
muitos alentos, ainda é presente.
A tragédia africana também passa por aqui. A
situação de guerra civil em que está mergulhada Joanesburgo
constitui uma expressão forte da encruzilhada da África do Sul
pós-apartheid. Garantidos os direitos civis e a democracia parlamentar,
falta mexer nas estruturas económicas e sociais ? arredados, por ordem
do regime racista, do bem estar material de que foram e são os principais
produtores, sobre a maioria negra pesam os encargos do desemprego e do salariato
de miséria, hoje impostos pelo neoliberalismo.
Maputo, aos 6 de Junho de 2001
Fernando Bessa Ribeiro
UTAD-Chaves
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