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António Ramos Rosa - ou a construção do corpo e do espaço

Poeta do silêncio e da solidão, do corpo e do espaço, e cuja originalidade reside, como disse Jorge de Sena, "no equilíbrio entre uma sempre a ultrapassar-se amargura adolescente e uma firmeza de tom que se oculta num estilo aparentemente entrecortado e difuso", António Ramos Rosa tem feito caminho por entre vários outros caminhos, na soma de muitos livros que já mal se podem contar e fazem da sua condição de poeta um dos mais profícuos criadores literários, em que a palavra silenciada ou subversiva se impõe no modo próprio de se dizer Poeta e ser um profundo conhecedor de tantos outros poetas, que não deixam de povoar o seu pessoal universo e ser motivo de várias leituras nos diversos ensaios de incisões oblíquas. Mas, em forma de um "grito claro", que marcou o começo do seu itinerário poético, assim mesmo poder proclamar em "O Boi da Paciência", que é ainda um dos mais emblemáticos poemas:

Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!

Mas não é verdade, porque até hoje a aventura poética de Ramos Rosa não conheceu limites, consolidou-se numa teia feita de muitíssimos poemas, e tantos são que já não têm conta, é verdade, não sabe fazer outra coisa que não seja escrever, falar com os próprios deuses e fantasmas, encher de palavras as folhas brancas, não só para construir o próprio espaço físico e espiritual, por entre montes e montes de papéis, desenhos, livros, na aparente desordem da sua mesa de trabalho, mas sobretudo para conformar por outras veredas de sonhos e inquietações esse "programa solar" que tem sido o desafio de todas as horas em mais de quarenta anos de ofício de poeta que "está vivo e escreve sol". Ontem e hoje, como é evidente nos muitos poemas deste seu último livro intitulado As Palavras:

A palavra é o desejo do espaço e o espaço do desejo
para que tudo o que em nós é confuso e vago
se transforme em leve arquitectura
com janelas para o mar ou campos ondulados.

Mas, na aparência de ser um Quixote de outras utopias, escondido no silêncio da casa e sempre às voltas com os seus fantasmas ou deuses de outras galáxias, nessa propositada construção do corpo e do seu espaço, a poética de Ramos Rosa consolidou-se na amargura de muitas desilusões, no cansaço das horas que passam e lhe deixam tempo para ter consciência de que sempre "estamos nus e gramamos", mas sobre o rosto da terra e na claridade vesperal de ser ainda possível, pelos caminhos da memória, ressuscitar as sombras e os lugares que moram longe, ou redescobrir outras regras que consintam ser transitivo dentro da própria ordem ou desordem e "na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo". E, na certeza de que os mecanismos interiores se não desafinam e outros sons e palavras enfeitam esse mundo fechado em que o poeta vive na permanente ocupação do espaço que é o seu por direito a sê-lo, desse movimento calmo ou desvairado emerge de novo para declarar:

Tal é o vago movimento da ingénua liberdade
que toca o seu extremo e cria o seu espaço
em que atravessa a sua ausência branca.

Sabemos que esse caminho nunca foi um mar de rosas, o poeta sabe do que fala e do que canta, do que lamenta e de si mesmo se lamenta, longos e demorados têm sido os anos de silêncios e angústias, no temor e tremor da morte e na ânsia de louvar a vida, como profundo sentimento do mundo que se entrelaça nas mil teias desse percurso sinuoso, vibrátil, solar ou nocturno, numa forma de melancolia que não pede licença para se impor e ser a exacta medida de todos os seus conflitos ou desamores agora que vai a caminho dos oitenta anos. E ainda cantar:

O que o poema pressente é a sua própria voz
que lhe abra um espaço ou projecte um horizonte.

Por isso, a par e passo, a arte poética de António Ramos Rosa se confunde com a sua própria existência real, por entre dificuldades e várias formas de sobrevivência, mas sempre no propósito de acima de tudo, nessa liberdade livre que foi a sua pessoal opção, saber que a poesia o visita a todas as horas e, por entre diferentes clamores, a vida afinal se impõe para ser vivida nos altos e baixos por si mais conhecidos e sentidos, na obsessiva vocação de escrever e saber uma vez mais que:

Escrever para dormir enfim na sua própria sede
ou para respirar o pulmão do espaço
Conhecer o silêncio como espaço e como fruto
e pelos teus olhos o mundo a si se vê.

Serafim Ferreira

António Ramos Rosa

AS PALAVRAS, Poemas
Ed. Campo das Letras / Porto, 2001.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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