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Manuel da Fonseca - O vagabundo (ainda) na cidade

O trabalho de recuperação das crónicas de Manuel da Fonseca dispersas em jornais tem vindo a ser feito com todo o rigor e entusiasmo, sobretudo no sentido de não ficarem esquecidas essas histórias que pôde escrever num tempo lisboeta tão diferente do de hoje, quando a capital ainda não estava enxameada de carros e o "vagabundo" ou "andarilho" de muitas caminhadas podia deambular à vontade pelas ruas da cidade.

Na verdade, as crónicas ou histórias breves que se reúnem em O Vagabundo na Cidade foram publicadas nas páginas do jornal República em 1967 e 1968, quando Salazar ainda não tinha caído da cadeira e a Lisboa não chegaram os sobressaltos do "Maio/68" pelas ruas de Paris. Era um tempo cinzento, triste, amordaçado, e é disso que, na atenção lúcida da sua escrita, o autor de Seara de Vento oferece aos seus leitores como prova evidente de que os anos não apagaram de todo os seus passos de "vagabundo" e assim se coloca a nosso lado e nos diz que olhemos a velha senhora que todos os dias vai ao café, não fala a ninguém, fuma um cigarro cheia de recordações, ouçamos os pregões ou os gritos pausados dos ardinas pelo Rossio ou à esquina do "Palladium", relembremos as brincadeiras pela Moares Soares ou praça do Chile, onde as crianças ainda jogam ao berlinde, ouçamos as conversas à mesa dos cafés ou das tascas, por entre um copo de tinto, um brande ou uma ginjinha, tantas vezes só conversas caladas, de gente fala-só que circula pela cidade em busca de outros sonhos, sabe-se lá, no meio do trânsito calmo, menos poluidor, regulado pelos gestos sabidos de um polícia-sinaleiro à entrada do Camões ou do Saldanha.

Ora, através da agradável leitura das quarenta e três crónicas breves ou histórias desse quotidiano lisboeta que integram O Vagabundo na Cidade, retratos sempre muito vivos, porque tal como nas suas Crónicas Algarvias Manuel da Fonseca estabelece uma clara fixação do quotidiano em termos poéticos e literários, em finais da década de 60, com todos os defeitos e virtudes de viver na capital ou fazer a viagem que dura uma eternidade entre Santiago de Cacém e a capital, seja de camioneta ou de comboio. Mas toda a incidência das suas crónicas se observa no modo simples e directo como estabelece o diálogo connosco, como se fôssemos ainda os seus leitores de ontem nas colunas da República, e por aí a memória de um tempo se faça de um saber experimentado e dorido, calmo e sorridente, irónico ou evocativo, como o faz em relação ao Poeta da Ereira ("Nunca trataste da tua fama", Afonso Duarte. Nunca o podias ter feito. Não sabias. Não o sabes ainda. Coube-te esse dom, essa sabedoria, esse conhecimento de seres poeta". (...) "Quando esta confusão, mantida para proveito dos tais ?poetas? que há, desaparecer, tu ficas, Afonso Duarte. Sabemos que ficas. A tua voz lírica e dramática, nascida das raízes profundas da Ibéria, canta o amor e a vida. Tu o disseste: "Eu posso lá morrer, terra florida!" - pp. 71-2).

Mas o que nestas crónicas mais se salienta são os "flashes" breves de um viver diário lisboeta, no pulsar da cidade que, repetimos, era então bem diferente, muito menos trânsito e barulho, poluição, desordens, tiros e assaltos pela noite, e é pelo sentido vernacular da sua escrita de marcada oralidade que Manuel da Fonseca capta a dimensão mais humanizada da vida, mesmo que por vezes seja implacável na sua ironia ou modo de denunciar tudo o que à sua volta nunca passou sem um registo pessoal e crítico, seja nestas crónicas ou nas histórias de Um Anjo no Trapézio ou Tempo de Solidão, por exemplo, em que sempre se registam os sinais da transformação da cidade e de quem nela vive e mora.

De facto, pelo propósito de uma certa vagabundagem que sempre se quadrou com o lirismo anarquizante e revoltado, o autor de O Fogo e as Cinzas reelabora o discurso por uma escrita depurada que prende os leitores, seja para falar das agruras das gentes alentejanas ou descrever uma Lisboa em vias de mudança ou ainda para captar as histórias que saem do fundo da vida e do mundo. E assim ressuscitam diante dos nossos olhos as sombras e lugares da sua constante presença de "vagabundo" que o foi e soube ser dos lugares lisboetas que voltam ao nosso convívio nas páginas recuperadas neste novo título integrado da sua "Obra Completa". E uma vez mais Manuel da Fonseca (1991-1993) está perto de nós pelo entusiasmo e beleza da própria escrita porque nela coabita, como observou Mário Dionísio, "uma força de prodígio, um apelo irresistível que vai de homem a homem, que muda, mudará os homens e as coisas, o apelo que ilumina e aquece toda a sua obra, todo o seu encantamento e toda a sua vidência, toda a sua rudeza e toda a sua ternura".

Serafim Ferreira
crítico literário

Manuel da Fonseca
O VAGABUNDO NA CIDADE
Ed. Caminho / Lisboa, 2001.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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