"Às Fontainhas vai-se na noite de São João ver a cascata
da Fonte, andar nos automóveis eléctricos, comer farturas e
comprar manjericos. E agora, aos sábados, vão lá vender
quanto exista, na feira das pechinchas: ninharias, extravagâncias e
selectividades. Todas misturadas (além de outras manigâncias
e manguelices de que não vale a pena falar)".
Helder Pacheco
"Porto: sítios, lembranças, emoções"
Há dias fui lá.
A feira começa cedo, habitualmente pelas cinco da manhã,
à medida que os primeiros vendedores se vão lentamente instalando
no Passeio das Fontainhas. É ainda com a luz trémula do dia que
jovens, velhos, homens e mulheres, sem excepção, muitos ainda
com o sono estampado nas faces, procuram o melhor local para expor as suas mercadorias,
naquilo que é o princípio do autêntico formigueiro humano
em que dali a duas horas se transforma a Vandoma (ou "Bandoma", se quisermos
ser fiéis ao dialecto tripeiro). Alguns nem chegam a ter oportunidade
de colocar os produtos nos expositores improvisados, feitos de papel de jornal
ou plástico, (des)ordenadamente dispostos pelo recinto, já que
os "olheiros", experimentados, inspeccionam com curiosidade a carga dos recém-chegados
- principalmente a dos mais inexperientes - pela qual costumam oferecer uma
bagatela e vendê-la mais tarde com uma margem de lucro superior. É
uma boa altura para fazer negócio, já que o desejo da maioria
dos vendedores é regressar a casa o mais cedo possível.
Entretanto, o único café aberto das redondezas
vai servindo os primeiros clientes. Meia de leite e torrada para alguns, café
e bagaço para outros. Fala-se do quotidiano, da feira da semana anterior,
discute-se a transferência do Jardel ou escuta-se simplesmente as conversas
em silêncio. Lá fora, lentamente, vai emergindo do nada um espaço
caoticamente organizado, fazendo lembrar um burgo medieval, com os seus traçados
sinuosos e inesperados. Os mais atrasados têm de se contentar com os lugares
à face da rua, menos concorridos pelo facto de ali passarem carros e,
assim, não permitirem uma avaliação tão atenta das
peças em exposição.
De "feira dos aflitos" - como já ouvi alguém
chamar-lhe - a Vandoma foi-se transformando ao longo dos anos em feira de plástico
e perdeu alguma da sua genuinidade. Hoje, a par com os vendedores ocasionais,
existem autênticas lojas dos "trezentos" com as últimas novidades
"made in Taiwan", pechisbeques de plástico, relógios de marcas
conceituadas (que ali estão ao alcance de praticamente qualquer bolsa),
capas de telemóveis, porta-chaves, fancaria diversa, tudo novinho em
folha. Há também as aparelhagens 'stereo' para carro e respectivas
colunas que debitam muitos decibéis de música intragável,
imprópria para o ritmo lento da manhã. E roupa, nova e usada,
maioritariamente procurada por mulheres, que se degladiam não raramente
por uma peça que calhou ser agarrada simultaneamente.
Mas esta não é a verdadeira Vandoma. A genuína
vive de objectos antigos, gastos, improváveis, aparentemente inúteis,
como a colecção de cartuchos de música (substituídos
há mais de três décadas pelas ainda contemporâneas
cassetes), o conjunto de seis pratos de mesa desiguais e ligeiramente rachados
ou o espelho retrovisor com o vidro totalmente escaqueirado, em que provavelmente
ninguém pegará; mas também de uma oferta que cumpre uma
importante função recicladora e que não se compadece com
a sociedade do mastiga-deita-fora dos nossos dias: a torradeira à qual
falta apenas uma resistência, o secador de cabelo com a pega remendada
com fita cola ou o par de patins que postas umas rodas ficam praticamente como
novos. Depois existem também as verdadeiras pechinchas, principal objecto
de interesse de quem ali se desloca, que muitas vezes surpreendem pelo preço
e pelo bom estado de conservação: uma bicicleta por três
contos, um rádio gravador por dois, um macaco pneumático por um
e meio ou uma bela máquina de escrever marca "Corona", um pouco mais
dispendiosa, mas ainda assim à venda por uma excelente quantia.
Livros e discos de alguma qualidade aparecem mais raramente,
mas ainda assim existem. Naquela manhã, podia apreciar-se num dos expositores
uma variedade de obras que cativaria até o leitor menos atento: "1984",
de Georges Orwell, "Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa", de
Antonio Tabucchi, "O Perfume", de Patrick Suskind, "Cemitério de Raparigas",
de Miguel Esteves Cardoso, "De Profundis, Valsa Lenta", de José Cardoso
Pires, entre outros. Ao aperceber-se do meu interesse por este último
livro - uma descrição, na primeira pessoa, da terrível
experiência que constitui a quase completa ausência de lucidez depois
de um acidente vascular cerebral - o vendedor exclama: "Mil paus!". No meio
do curto regateio que se segue acabo por desistir da compra porque o preço,
diz-me o meu interlocutor, é "fixo". Quem tem alguma experiência
desta feira sabe que ao final da manhã os preços descem consideravelmente
e é nessa altura que se fazem os melhores negócios. Resolvo, por
isso, aguardar por melhor ocasião.
Mais à frente, um conjunto de seis belos azulejos que,
por momentos, tentam a bolsa. Nestas alturas é um acto de ingenuidade
questionar a sua proveniência. "São da casa da minha avó",
responde ironicamente o rapaz novo que os está a vender, para risota
geral dos amigos que o rodeiam. A pergunta justifica-se porque nem sempre a
polícia vê com bons olhos a compra de objectos que possam ser considerados
roubados e, nessa circunstância, mais vale não arriscar. Isso não
impedia, porém, que mesmo ao lado se vendesse logotipos de marcas de
carros em alto relevo que costumam ornamentar a frente e as traseira dos automóveis.
Entre os produtos mais disputados estão as ferramentas
de construção e material eléctrico. Numa banca improvisada
com caixas de fruta, um homem dividia a atenção entre três
ou quatro interessados. Cabeças de martelos e de enxadas repartiam o
espaço com alicates, chaves de fendas, disjuntores e tomadas eléctricas,
tudo com aspecto bastante usado, de vários tamanhos e em diferentes estados
de conservação. O vendedor, José Ferreira, de 54 anos,
já frequenta a feira há cerca de dez anos. Foi nessa altura que
ficou desempregado e todo o dinheiro que conseguia juntar era pouco para sustentá-lo
a ele e à mulher. Decidiu, por isso, dedicar-se à prospecção
deste tipo de material e revendê-lo. Um negócio que continua a
não disfarçar a escassa reforma auferida, mas que sempre dá
para "distrair" e ir conhecendo gente. Mas não é fácil,
já que o senhor José tem mais concorrentes - contei pelo menos
cinco - com material muito semelhante.
Um pouco mais à frente detive-me frente a uma colecção
de brinquedos - soldadinhos de plástico, piões, carrinhos em miniatura,
peças de Lego dispersas - e imagino a criança que já uma
vez brincou com eles numa qualquer escadaria, pátio ou jardim da cidade.
Fragmentos de memórias (quem sabe se do próprio vendedor) vendidos
ali por uma insignificância. Os brinquedos são outro dos negócios
mais lucrativos, principalmente se tiverem alguma antiguidade. Não era
o caso daqueles que tinham sido trazidos pela Joana Vidal, de 19 anos, misturados
por entre algumas peças de roupa, uma lanterna e uma caixa usada de cosméticos.
"O negócio está fraco, ainda não fiz sequer mil escudos...",
diz com ar desanimado. Apesar disso, explica que nunca perde uma oportunidade
de compor o parco orçamento para as noitadas do fim-de-semana. Nessas
alturas levanta-se por volta das 4 da manhã, para conseguir um bom lugar,
e vem de autocarro com os dois amigos que habitualmente a acompanham nestas
andanças.
Curiosa a sensação de que ali todos se conhecem,
em maior ou menor grau, constituindo uma espécie de grande família
que se reúne ritualmente uma vez por semana, facto visível principalmente
pelas conversas estabelecidas entre alguns compradores e vendedores. Uma forma
de se distinguir entre quem são os frequentadores ocasionais, como a
Joana, e os autênticos profissionais que calcorreiam a Vandoma e outras
feiras do género. De entre estes, o "Mata-Sete" é uma das figuras
mais emblemáticas - e assíduas. Envergando um traje que o assemelha
a um domador de leões (embora claramente fora do activo), tem o peculiar
hábito de ir abanando ao de leve uma chibata, com borlas na extremidade,
à medida que passa pelas bancas, balbuciando algo de incompreensível,
lembrando um exercício de espantamento que já vi na televisão
praticado pelos pajés índios. Apesar do mau génio que o
caracteriza, é uma das figuras mais queridas da feira, cumprimentado
por alguns, alvo de escárnio por parte de outros, mas sem dúvida
uma referência incontornável.
A par deste mundo de economia paralela, subsiste, por sua vez,
uma economia sub-paralela. Carregando às costas dois grandes sacos, uma
mulher vende pães com os mais diversos recheios, do simples queijo ou
fiambre até aos rissóis de carne e marisco. Afirma que já
chegou a ter concorrência de outra senhora, mas desde há dois anos
que passou a deter o monopólio das sandes. "Não sei o que lhe
aconteceu... deixou de vir", explica com um ar vagamente pesaroso. Conheci-a
quando era adolescente. Recordo-me dela fazendo um tremendo esforço para
furar por entre as passagens estreitas formadas pelos expositores com um carrinho
de compras adaptado, equipado com duas garrafas-termo - café e sumo -
e dois sacos, um com pães com diversos recheios, outro com queques. Para
quem à hora da sua chegada já tivesse feito algum dinheiro, aqueles
simples manjares constituíam um autêntico regalo. Era fantástico.
O final da feira é quando calha, mas vai-se tornando
visível a partir do momento em que as folhas de papel de jornal abandonadas
começam a esvoaçar por falta do peso que as sustinha. Arruma-se
a tralha, e, espalhados aqui e ali, no chão ficam apenas os despojos
de uma manhã que no início promete sempre. A mim, serviu ainda
para reviver "emoções", como sugere o título do livro do
Helder Pacheco citado no início. E quem espera sempre alcança:
acabei por levar o livro por 500 paus.
Ricardo Jorge Costa
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