I ? A ordem do capital
...no entanto é preciso cantar,
mais que nunca é preciso cantar...(1)
No pós-primeira guerra mundial o governo socialdemocrata alemão,
sucessor da ditadura wilhelmiana, no afã de constituir uma nova institucionalidade,
praticou uma revolução passiva, uma revolução sem
revolução, como diria Gramsci. Para obter tal fim procederam à
eliminação do movimento espartaquista. Rosa Luxemburgo sintetizou
a situação: "A ordem reina em Berlim". O limite
dessa ordem passou pela morte de Rosa e de Karl Liebkenecht. Parodiemos Rosa:
"A ordem reina no Brasil" Por que essa afirmação?
Por que a comparação? Não vivemos hoje uma sociedade democrática
com o pleno exercício dos poderes e com uma liberdade de imprensa? Sob
o capitalismo, a socialdemocracia tende a limitar a liberdade dos movimentos
sociais, dado que busca integrá-los à ordem do capital.
O exemplo húngaro de 1919, do qual participou Lukacs, demonstrou exemplarmente
essa incompatibilidade. O problema reside exatamente no fato de que a ampliação
dos direitos sociais tem uma radical incompatibilidade com a acumulação
de capital. A luta de classes não é um desejo dos esquerdistas,
mas é o próprio núcleo das relações sociais
capitalistas constituintes e constituídas da nossa sociabilidade capitalista.
E, mais do que em outros lugares, a violência é fundamental para
que a ordem reine.
Como trabalhar essas questões? As idéias de democracia
e cidadania aparecem diante do sentido comum e mesmo para muitos teóricos
como a regulação do conflito e da violência. Muitas vezes
se fala mesmo da desnecessidade dessa violência quando se vive em um regime
democrático, entendido como o reino da cidadania em ação.
É, contudo, tarefa de qualquer analista sério trabalhar com a
preocupação teórico-epistemológica de evitar as
anfibologias e ver/construir o significado atribuído pelos indivíduos
e classes a conceitos aparentemente unívocos, como democracia e cidadania.
Rancière, na sua obra, faz um quadro comparativo entre as categorias
dos Manuscritos e de O Capital. Apenas para tomar alguns exemplos:
o conceito de homem dos Manuscritos aparecerá em O Capital
como trabalhador, a atividade genérica é agora vista como trabalho
e o objeto se torna produto. O deslizamento de um significante em outro altera,
contudo, o próprio significado. Não cabe neste momento examinarmos
a questão de como se constróem os conceitos nem como se realiza
o processo da leitura. Afirmemos que uma ordem social, que necessariamente articula
as práticas pressupostas naqueles conceitos, é sempre uma correlação
de forças que se estabelece entre as classes sociais. Melhor dito: que
elas constróem. Gramsci, em Tre principi, tre ordini (1917) demonstrou
o conjunto das possibilidades abertas pela historicidade do liberismo (princípio
econômico) e do liberalismo (princípio político). Sabemos
que um dos principais obstáculos epistemológicos na área
das chamadas ciências sociais prende-se ao fato de que os conceitos se
expressam em palavras. Estas, contudo, implicam em uma complexa e rica polissemia.
Para ficarmos no exemplo mais simples, podemos afirmar que de acordo com a definição
que dermos ao conceito de democracia, podemos chegar a conclusões extremamente
diferenciadas.
Seymour Martin Lipset, no seu polêmico e contestável
(perdoem-nos a redundância pedagógica) The Political Man
constrói uma definição de democracia que passa pela possibilidade
de rotatividade dos partidos no exercício do governo e, ao mesmo tempo,
pela presença da economia capitalista, identificada a mercado. Se tomarmos
esse ponto de vista, formal, puramente formal, teremos de concordar com
ele que aqueles que estão mais expostos à comunicação
e ao mesmo tempo à possibilidade de obter bens (dos econômicos
aos simbólicos, passando pelos políticos) é seguramente
um membro de uma sociedade democrática, assimilada nessa leitura à
idéia de sociedade livre. E, obviamente, no caso oposto, teremos
a ditadura ou, pelo menos, o domínio do arbítrio. O que implica
que, pela própria definição, graus diferenciados de cidadania,
como aqueles expressados pelos que medem sua riqueza na ordem dos milhões
de dólares e os que vivem no vazio dos viadutos das grandes cidades.
O acesso diferencial ao saber permite incluir ou excluir as pessoas no quadro
da cidadania. A literatura mundial, de Ignazio Silone (Fontamara) a Ciro
Alegria (El mundo es ancho y ajeno) demonstra isso à saciedade.
Assim, ter ou não acesso ao idioma nacional por si só demarca
possibilidades e posições diferenciadas das comunidades indígenas
em relação às demais parcelas da população
(mesmo das dominadas). Isto é, nada mais, nada menos que passar de abstrações
puramente formais, vazias, ao campo da historicidade.
Mesmo no campo liberal esta é uma proposição
propagandística. A própria construção do par conceitual
"público-massa" instaura e demonstra a desconfiança
dos liberais quanto à possibilidade de generalização de
uma sociedade de iguais. De Tocqueville e seu horror à ditadura das maiorias,
aos teóricos das elites (Mosca, Pareto) essa distinção
está colocada. Público é o coletivo dos homens livres,
ou seja, racionais, dotados de informação e capazes de colocar
a sociedade no caminho reto. Massa é um conjunto amorfo de indivíduos
que, embora portadores da cidadania, não têm a mesma capacidade
de elaboração, a rigor, despossuídos do máximo da
racionalidade desejável para o exercício da cidadania "liberal".
Ortega y Gasset, um autor insuspeito de esquerdismo, afirmava
que a confusão entre liberal e democrata era coisa do século passado,
já que no século XIX o liberal estava no poder e o democrata na
cadeia. Essa identificação é, por si só, uma violência.
Ao proceder deste modo, legitima-se o liberal com o prestígio do democrata.
Chamemos a atenção para um fato evidente por
si mesmo. Essa forma de pensar e praticar a "democracia" exclui, obviamente,
outras possibilidades e nada mais é do que a reiteração
do já existente, do stato quo ante. Essa afirmação
pode parecer radical e subversiva para muitos, mas, ela é perfeitamente
aceitável e, de fato, é aceita, pelo maior teórico do liberalismo
político da segunda metade do século XX. Norberto Bobbio vai mais
além e chega a afirmar no seu O Futuro da Democracia que as instituições
que realmente importam no exercício do poder (burocracia, aparatos militares,
grandes empresas) são perfeitamente irresponsáveis, ou seja, não
respondem a nenhum controle democrático. O próprio conceito de
liberdade é, hoje, negativo. Não se configuram mais (e nem o poderiam)
as condições da igualdade como generalidade. Mesmo em países
onde a chamada tradição democrática existe, vemos a passividade
da massa dos eleitores e a distinção público-massa se apresentar
com toda a clareza. Exemplar dessa distinção é a eleição
presidencial americana, onde um derrotado nas urnas (Bush) pode vencer no Colégio
Eleitoral para o majoritário (em votos populares: Gore). E isso sem
se falar de que o grau de abstenção nas eleições
daquele país é altíssimo. Se isso é democracia,
tudo o que for diferenciado disso implica em uma não-democracia, ou pelo
menos, em uma sua forma mutilada.
O cidadão é hoje um cidadão-consumidor
e não é mais um portador de uma cidadania positiva. Sequer é
alguém que tem o direito de ter direitos. Os direitos não estão
mais associados à noção de indivíduo, não
expressam o mito da igualdade da revolução francesa; os direitos
não são mais inerentes, mas puramente contingentes e até
mesmo... descartáveis. São deslocados para o plano das necessidades,
para o campo do particularismo. Coloquemo-nos agora diante do fato que o mito
liberal da divisão e interdependência dos poderes foi, ao longo
do século XX, inteiramente subvertido, com a predominância dos
executivos sobre os legislativos e sem que os judiciários tenham feito
movimentos sólidos e permanentes no sentido da defesa das instituições.
A recente interpretação do Supremo Tribunal americano, decisivo
no resultado daquelas eleições, tornou claro o que já se
sabia: 5 republicanos votaram contra 4 democratas. E decidiram em favor do perdedor,
contra aquele que teve maior número de votos populares. Aqui, a justiça
não foi apenas política, mas, sectariamente partidária,
pondo em risco um dos pilares da política liberal : a crença generalizada
na neutralidade da justiça.
Edmundo Fernandes Dias
1) Carlos Lyra, Marcha da Quarta Feira de Cinzas
2) Trabalhamos o conceito de anfibologia no sentido preciso em que Jacques
Rancière o faz em "Le concept de critique et la critique de l?économie
politique des Manuscrits de 1844 au Capital", Louis Althusser (org.) Lire
le Capital, vol. 1, François Maspero, Paris, 1967, em especial nas pp.
108-115.
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