Assim en passant, ou melhor, en écoutant parte de uma
entrevista de televisão, a meio caminho entre o quarto de hotel e a casa
de banho anexa ouço uma coisa como esta: "O século XX foi
o século da descoberta; o século XXI será o século
da criação". Acreditem que valores poderosos, poderosos sim,
que cá a gente não é só "psique", me obrigaram
a não interromper o percurso, que os objectivos eram de atingir e depressa.
Mas o ouvido manteve-se à escuta e a impressão que ficou foi a
que passo a descrever, com o mínimo de subjectividade a que se não
furta uma interpretação mesmo que apodada de mera leitura.
Era uma porta [a passagem de século] que, uma vez transposta,
imporia ao passante que redefinisse processos, atitudes, conceitos e, sobretudo,
finalidades da ciência e de outros tipos de conhecimento/saber ainda que
não se lhes pudesse reconhecer atestado de cientificidade. Ao pedido
de clarificação por parte do entrevistador seguiu-se uma tradução
do mestre: A partir de agora há que clonar e provocar mutações.
Tout court! O que passou é memória (não disse História)
e a descoberta findou (não disse continua).
Com tão magistral mandamento se deu por finalizada a
conversa(?) e começaram a deslizar ecran fora as linhas com os nomes
dos fazedores e patrocinadores do programa.
Eram horas de pensar em dormir e, antes de pensar em dormir,
normalmente pensa-se na mala que se leva para o sono. A verdade é que
a minha mala deitava por fora de inquietação e dormir não
era prioridade.
Quereria dizer-se que a humanidade já chegara a todos
os cantinhos e que as crianças ficavam proibidas de procurar tesouros,
pior ainda, sem razão para desenhar mapas e fabricar magia que levem
ao local do ainda não encontrado?
Pretender-se-ia anunciar que a criação nascia
com o novo século? Que até àquele natal se usava mal a
designação? Que dicionários novos anulam antigos livros
de aprender palavras?
Haveria outro sentido na mente de quem foi tão simplista/sinistro
na descodificação do discurso? Por que razão os mecenas
só financiam certos dizeres?
Não foi por acaso que naquela noite sonhei com o Admirável
Mundo Novo que na adolescência me arrepiara depois de ter começado
por me fazer sorrir.
Iracema Santos Clara
E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima
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