1. ?Os homens fazem diferença" (sobretudo durante uma
revolução, uma guerra civil, ou uma guerra entre Estados), escreveu
J. Cutileiro no seu sempre interessante cotejo semanal de "O mundo dos outros".
Não fosse ele o autor do melhor ensaio de antropologia cultural que se
escreveu acerca do Alentejo pré-25 de Abril de 74 ("Ricos e Pobres no
Alentejo"). Não fosse ele também quem, como embaixador de Portugal,
estava na África de Sul no momento em que Mandela e Klerk fizeram o impossivel.
Não fosse ele ainda quem, mais recentemente, como representante da UE,
se viu, qual Diógenes, de lanterna na mão à procura de
um homem (ou de uma mulher, a distinção de sexos é irrelevante
para o caso) que fizesse a diferença nos Balcãs, quando ainda
era possivel conceber que a implosão da Jugoslávia não
tivesse o epílogo (provisório) que viemos a conhecer: os bombardeiros
da NATO encarregues de traçar as fronteiras provisórias da "Grande
Albânia" contra as fronteiras da "Grande Sérvia", dois pesadelos
de sinal contrário.
2. ? Os homens de que este fino observador nos fala não
são, pois, aqueles homens abstractos que formam as ainda mais abstractas
"massas populares". São pessoas concretas, indivíduos com uma
biografia, um rosto e um nome próprios, que se encontram, por vezes,
no momento certo e no sítio certo (por mérito próprio ou
não, para o caso é irrelevante) para poderem influenciar decisivamente
o rumo aos acontecimentos, para o melhor ou para o pior. Se forem de uma certa
qualidade, acontece de vez em quando, com um pouco de sorte, que "o mundo pula
e avança", como dizia o poeta, do sonho para uma realidade mais humana.
Se forem de outra qualidade, o mundo pula também, mas da realidade (tantas
vezes asfixiante) para um pesadelo ainda mais sufocante. Chegada a hora de fazer
o balanço, a diferença, porém, é flagrante. Num
dos pratos da balança estão milhares ou milhões de vidas
poupadas, no outro prato tantas outras ceifadas escusadamente; de um lado a
conquista ou reconquista da liberdade e da democracia (uma não pode existir
sem a outra no ponto de civilização em que nos encontramos), do
outro lado a queda, de novo, na opressão e na ditadura (de um tirano,
de uma oligarquia ou de uma aristocracia).
3. ? Também no 25 de Abril de Abril de 1974, o nosso
dia grande, houve homens que fizeram diferença, para o melhor. Alguns
revelaram perante o turbilhão de acontecimentos dos dois primeiros anos
um discernimento político tão acima da média que, visto
à distância de 27 anos, nos parece quase miraculoso. Entre os militares
do chamado MFA um deles terá sido o então major Melo Antunes,
entretanto falecido. A ele se deve, salvo erro, os famosos três "d" ?
democratizar, desenvolver, descolonizar ? que fizeram desse movimento militar
um movimento com prazo marcado de extinção, por força do
primeiro "d". Entre os civis, terá havido outros de igual ou maior importância,
cujos nomes não sei se conheço ao certo, nunca tendo aprofundado
o assunto como ele merece.
4.? Mas julgo saber uma coisa: dos mais lúcidos de entre
eles foi uma decisão que fez toda a diferença. Falo da decisão
de convocar, no prazo de um ano, uma Assembleia Constituinte, eleita por sufrágio
universal e encarregue de estabelecer os lineamentos institucionais de um Estado
de direito democrático. Hoje, de resto, é fácil de ver
que, sem essa decisão e sem a luta para a fazer cumprir, o "d" de democratizar
teria ficado à mercê de todas as derivas messiânicas e talvez
acabasse por sucumbir a breve trecho. Ora, sem democracia estabilizada, seria
impensável dedicar atenção sustentada às intermináveis
tarefas do "desenvolvimento", outro dos "d". Quanto ao "d" de "descolonizar",
ficou por cumprir, como era fatal que acontecesse, tantos são os alçapões
e equívocos que esta palavra-de-ordem encerra.
5.? Na sua acepção mais ampla, "descolonizar"
significa retroverter os resultados da dominação das potências
europeias sobre muitas partes do globo: um processo que durou séculos,
trucidou e misturou povos, triturou e amalgamou culturas, apagou e criou línguas,
demoliu e edificou instituições. Para fazer retroceder este processo
à sua origem, seria preciso não um Pol Pot mas uma legião
deles e o zelo fanático de gerações sucessivas de talibâs.
Podemos imaginar os resultados de semelhante empreendimento. No que a palavra
possa, porém, ter de aproveitável, só poderia significar
que a democracia chegaria também, em prazos curtos, a todos os territórios
ultramarinos do Império Português, que deixaria, assim, de o ser.
O que implicava que o novo Estado democrático se desse como primeira
tarefa organizar em todos eles, com a ajuda da ONU, a preparação
de eleições livres e por sufrágio universal para outras
tantas Assembleias Constituintes. Em parte nenhuma isso aconteceu, salvo agora
em Timor-leste, 26 anos depois da Constituinte portuguesa e ao cabo dos sofrimentos
e das matanças que se conhecem. Com excepção dos arquipélagos
da Madeira e Açores (assimilados ao "continente" por razões étnicas,
económicas e culturais) e de Cabo Verde (onde existia uma nação
sem Estado próprio), em nenhum outro território do antigo império
ultramarino de Portugal, se pode falar, salvo por eufemismo, de Estado de direito
democrático. Quanto ao "desenvolvimento" desses territórios, há
boas razões para duvidar dele, mesmo que se o avalie pelos critérios
mais generosos.
6.? Em suma: faltaram, aqui e lá, nos dois anos decisivos
da revolução do 25 de Abril de 74, "os homens que podiam fazer
diferença", unindo pelo discernimento político o que a história
ligou empíricamente. O dia é, pois, grande históricamente
e razão de legítimo regozijo. Mas convem ter presente que mesmo
o seu melhor "d" ficou aquém do que seria possivel.
José Manuel Catarino Soares
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