Entre os desafios que a escola pública continua a enfrentar
no Brasil, a alfabetização das crianças das classes populares
continua a ter um papel de destaque. Criar estratégias pedagógicas
que contribuam para facilitar a apropriação da linguagem escrita
pelas crianças tem sido uma tarefa árdua especialmente para as
professoras que encaram esse desafio cotidianamente.
Nos encontros de formação continuada ou nos cursos
de formação inicial as respostas que as professoras encontram
para as suas dúvidas sobre o como alfabetizar, frequentemente, apontam
para a necessidade de partir da realidade do aluno e aproveitar a sua bagagem
cultural. Também no sentido de buscar uma maior aproximação
entre o mundo da escola e o mundo fora da escola, a criação de
um ambiente alfabetizador é apontada como uma estratégia pedagógica
alfabetizadora importante.
A criação desse ambiente alfabetizador na sala
de aula ou na escola, precisa considerar que um dos grandes problemas da alfabetização
das crianças das classes populares é que, frequentemente, filhas
de pais analfabetos ou semi-analfabetos, essas crianças não convivem
em seu cotidiano com o uso da escrita, o que lhes possibilitaria ir construindo
o sentido da escrita, embora vivam em sociedades letradas e portanto estejam
expostas a grande variedade de materiais escritos, nas ruas, na televisão,
nos supermercados.
Para as crianças de uma classe média urbana a
dificuldade no aprendizado da leitura e da escrita é exceção.
Frequentemente, já estão lendo e escrevendo ao entrar para a escola.
Para as crianças das classes populares, porém, o desafio da escola,
além de criar situações de uso da leitura e da escrita,
é dar sentido a esse aprendizado. Para isso é preciso que, além
de trazer para a sala de aula a maior variedade possível de materiais
escritos, a ação docente se dê no sentido de criar múltiplas
situações de interação com esse material e uso da
linguagem escrita.
Por outro lado porém, é preciso refletir também
sobre as diferentes alfabetizações que as crianças das
classes populares vivem em seu cotidiano, os saberes e as leituras que construídos
no dia a dia, para que reconhecidos e mobilizados dentro da escola possam se
tornar a base do processo de apropriação da linguagem escrita.
Com o objetivo de contribuir para a reconstrução
desses ambientes alfabetizadores é que temos procurado investigar os
conhecimentos, valores, maneiras de ser e estar no mundo que as crianças
das classes populares constroem em seu cotidiano, dentro e fora da escola.
Quais são os conhecimentos que uma criança que
vende produtos na rua já traz ao entrar para a escola? Que lógicas
estão subjacentes à sua forma de construir conhecimentos, de expressar
estes conhecimentos, de se "virar na vida"?
Investigando a escola do mundo
Começo da noite, no centro da cidade do Rio de Janeiro,
algumas amigas e eu conversávamos num bar onde um conjunto musical se
apresentava. Graciele, uma criança de seis anos nos oferece chicletes.
Comprávamos os chicletes e conversávamos com a criança,
quando entra uma música famosa. A menina abandona a caixa de chicletes
com o dinheiro da venda em cima da nossa mesa, se afasta e começa a dançar.
Surpresa com o fato da criança ter deixado o dinheiro para trás,
resolvo testá-la e guardo as moedas da caixa ( uma parte significativa
da venda). Acabada a música, Graciele retorna, recolhe a caixa e já
ia se despedir quando dá por falta das moedas. Entra em pânico
e começa a relacionar as moedas que estavam faltando. Eu devolvo as moedas
e pergunto se não é perigoso deixar a caixa de dinheiro da forma
que tinha deixado. Ela justifica dizendo - vocês estavam tomando conta.
De que forma uma situação cotidiana como essa
pode nos ajudar a entender melhor o ponto de vista das crianças das classes
populares trabalhadoras, que frequentam as classes de alfabetização,
muitas vezes sem sucesso, sem generalizá-las, mas procurando pistas reveladoras
dos seus saberes em construção?
Em minha lógica de adulto, abandonar o trabalho em função
da brincadeira poderia acarretar para a criança vários tipos de
sanções, caso ficasse sem o dinheiro da venda. Na lógica
da criança, em sua "psicologia prática", construída
a partir dos desafios do cotidiano, nós éramos de confiança
e, portanto, idóneas para tomar conta de seu dinheiro. Isso lhe permitia
atender os apelos da festa e mesmo em situação de trabalho, aproveitar
para brincar. Seja por desenvolver desde cedo uma intuição que
lhe ajude a perceber em quem confiar, seja pela capacidade de construir argumentações
aceitáveis pelos outros (ambas habilidades essenciais para quem trabalha
com o público), Graciele, com suas respostas e atitudes, colocava em
cheque nossas lógicas e concepções. Nos desafiava a "compreender
o compreender" do outro. Graciele não separava o espaço do
trabalho do espaço do lazer porque em sua própria vida espaços/tempos
estão misturados. Mundo do adulto/mundo da criança, espaço
público/espaço privado, hora de trabalho/hora do lazer, casa/rua,
questões bem definidas e delimitadas para as crianças das classes
médias, na realidade das crianças das classe populares se pautam
por outras lógicas. O trânsito por esses diferentes espaços/tempos
vai construindo uma cultura híbrida portadora de saberes, valores, crenças,
negociados e traduzidos cotidianamente.
As experiências vividas pelas crianças trabalhadoras
das classes populares, entre as quais Graciele é apenas um exemplo, vão
constituindo uma cultura da sobrevivência, fruto da necessidade de responder
aos desafios do cotidiano. Embora esta cultura não seja reconhecida pela
sociedade em sua riqueza, é potencialmente fértil em estratégias
mais solidárias e cooperativas. E, na sala de aula, podem se constituir
em importantes componentes de novos ambientes alfabetizadores.
Os ambientes alfabetizadores em que vivem estas crianças
e no qual vão aprendendo a ler o mundo È múltiplo, híbrido,
complexo. Assim também deveria ser os ambientes alfabetizadores na sala
de aula, trazendo toda a complexidade das experiências vividas pelas crianças
que apesar de mergulhadas na oralidade, em suas vivências, especialmente
as de trabalho, vão compreendendo a importância de saber ler a
palavra. E se a escola cria ambientes alfabetizadores tão ricos quanto
os ambientes alfabetizadores da vida, o exercício da escrita pode gerar
um processo de tomar a palavra.
Escrevendo suas próprias histórias, as histórias
de seu grupo sociocultural e as mil histórias que presenciam nas ruas
por onde andam, as crianças vão aprendendo que através
da escrita suas palavras ganham asas e podem chegar a espaços distantes,
envolvendo novos interlocutores e até chegando a fortalecer a luta por
uma sociedade mais igualitária.
Mairce da Silva Araújo
Professora da Faculdade de Formação de Professores da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
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