Dez anos passados sobre a morte de António Tavares Manaças, de
repente dou comigo a pensar na vocação de silêncio ou de
murmúrios cruzados, na memória das suas "recitações"
e ouvi-lo desabafar: "Gastei o tempo todo com esta coisa de misturar
pessoas. Claro que o que existe existe e aqui eu sou o ritmo. Goste ou não
goste posso dizer-vos que a intenção era outra e que eu não
tem sentido". Trata-se de recitações de ontem e de sempre
no erguer de imagens e falas perdidas na noite de todas as noites, memórias
e imagens perdidas ou relembradas por dentro de si, recordações
de infância ou passos de adulto, convívios alongados pelas noites
passadas em tascas ou em bares, no acto de construir/desconstruir de outro modo
um sentido para a vida, para esta vida, ou no entendimento sabido de que na
lição de todas as coisas o mundo pode assumir outras direcção
ou justificação. Porque chega à boca de cena e aí
pode proclamar: "Nenhuma música se pode ouvir em comum havendo
a pressa necessária de estar vivo". E por aí a janela
da mesma casa se abre de par em par, da cozinha para o quarto, para a rua, nos
desabafos sentidos de um quotidiano reinventado noites fora, passos atropelados,
gentes aos baldões, falas de acaso, a vida toda para ser vivida e decifrada:
"Sempre houve quem não gostasse de dormir de noite. Eu não,
amanhã é que. Trago as horas cheias e espero. Sei muito bem as
minhas limitações". E o "discurso" assim se
alarga e aprofunda nas sinuosidades de um falar para se lembrar, de um desabafar
impiedoso e implacável, mordaz e cortante, mesmo que confesse "que
das pessoas, juro-vos, não tenho razões de queixa". Mas
não se trata de um sentimento de raiva ou de causticidade contra o mundo
ou mesmo em desfavor da vida. Não, claro que não. O que perpassa
de absoluta e grave sinceridade nas prosas de António Tavares Manaças,
é ainda essa nítida impressão de o tempo não contar,
por tudo "ficar suspenso mais tempo como se queria ao princípio
e as cadeias à volta da sala volta não volta voltam".
E, nesse entrecruzar de imagens e de lembranças, é o palco da
própria vida que a todo o instante se monta e desmonta em cenários
que mergulham no quotidiano e nele salvam ou recuperam uma frase, um gesto,
um rosto, uma rua, uma sensação de vazio ou de enfado: "Sinto
só os dias passarem por fora dos meus sonhos e misturo sem saber senão
depois o rancor pequeno e inútil que se passa à minha volta. Na
verdade não sei se o uso, mas sei que funciono assim e a minha alegria
não é compartilhada". Não é, pois, um "elogio
da loucura" por haver que pesa e se denota no discurso literário
e poético de António Tavares Manaças, mas é antes
essa desilusão bem amarga e doce de certa impotência sobre os desabafos
da vida e o refúgio em queda livre pelas noites de muitos enredos, sem
nunca esquecer a bússola de outras possíveis navegações.
Porém, na discreta vocação de silêncio
que se espelha nas "estórias" dos livros que nos deixou, António
Tavares Manaças sempre redescobre o fio de prumo para o equilíbrio
necessário no modo de falar e de contar: não que
a literatura seja remissão de outras culpas, mas porque no jeito de assim
falar é que está o ganho, ou o sentido reencontrado de pôr
em ordem a sua própria casa literária. Falou muito e escreveu
pouco, contou e viveu mais do que nos deixou narrado e escrito. Mas, nesse marulhar
surdo de palavras ou secos desabafos, tantas vezes mordazes na forma de olhar
o mundo em redor, soube claramente distinguir o "muito" e o "pouco"
do que a vida pôde ensinar pelas alterações ou interrogações
constantes de um destino amargo e condoído, inocente e sabido, mas decifrado
e entendido na pequenez da nossa condição: "Quem é
que acrescenta alguma coisa em nós se nós não acrescentamos?
Pois ter sido assim que eu me dei se é que dar possa ter algum sentido
eu vejo-me a ver tanta coisa que hoje mesmo ficando triste não me arrependo
de nada". E, no entanto, esse sentido lírico e afectuoso das
suas "cronografias" descritivas e sentimentais, patenteia-se na visão
poética e magoada de António Tavares Manaças olhar o mundo
e dele captar os sinais visíveis de uma profunda tristeza ou desilusão
que se determina em versos soltos ou em páginas de uma "ficção"
reinventada pelos caminhos da memória. Poderá dizer-se, pois,
que a escrita traçada e prosseguida desde o primeiro livro se
desdobra no sentido de uma verdade ácida no jeito de entender a vida
e a gente que por dentro dela sempre anda e corre, mas tudo se encara na perspectiva
lúcida de numa refinada ironia saber captar o sentido das pequenas coisas,
falas e gestos, nessa valorização de um quotidiano envolvente
e sentimental, absurdo e desgastante, como só antes o souberam fazer
Irene Lisboa, Maria Judite de Carvalho ou Luísa Dacosta, Raul de Carvalho,
Miguel Serrano ou Virgílio Martinho. Não se revela, pois, um "mal
menor" a reduzida obra publicada, mas o exemplo literário de António
Manaças, no apagamento ou indiferença calada sobre os "círculos"
em que se tecem todas as cotações de valores, ergue-se como a
atitude de quem olhava e entendia a literatura como espelho da vida ou nessa
artificiosa descida um pouco sartriana de "saber mentir para dizer toda
a verdade", quis confirmar que "os literatos são uns
chatos" e se estava nas tintas para a crítica ou para os críticos
que sempre se colocam em bicos de pés para fazerem ouvir a sua voz. E,
assim, no alheamento da crítica sobre a valorização de
uma obra intervalar e esparsa no fio dos anos, sei do pouco e do muito que nos
ficou de António Tavares Manaças, no exemplo e evocação
de outros que tiveram talvez a mesma sorte, mas no instante de a reler compreender
com toda a nitidez que merece ser lida e entendida na justa dimensão
do seu acto criador, mesmo que a crítica ou os críticos a "expliquem"
mal ou dela nos falem como obra menor ou desinteressante. Mas só o pode
dizer quem da literatura tem uma visão fechada, elitista ou mesmo virtual.
E, ainda e sempre na lembrança do nosso convívio ao cair das tardes
pelas mesas do "Solar dos Galegos", nas lisboetas Escadinhas do Duque,
lembro sempre as horas em que tecemos de palavras e emoções os
pretextos para encher o tempo ou assim justificar a amargura do quotidiano que
sempre pesa nesta via-sacra de se estar vivo. E por isso António Tavares
Manaças continua vivo pelas suas "recitações"
ou conversas de muitas horas.
S. F.
António Tavares Manaças
FALAR ANTÓNIO / Ed. Contraponto, 1974.
AS RECITAÇÕES / Ed. Regra do Jogo, 1978.
MOLDURAS / Ed. & etc., 1986.
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