"Se calhar... Já tivemos todos aquela idade em que achamos
que a escola nos pertencia! É claro que ainda dependíamos de uma
reles mesada e de recolheres obrigatórios que nada nos diziam! Mas era
bué da fixe, não era? O primeiro amor, a primeira mortalha mal
enrolada, a dúzia de ovos mal gasta na cabeça de um profe que
até era bacano, as notas a Filosofia que eram sempre uma merda e o concerto
daqueles gajos que não sabiam tocar mas que nos faziam curtir à
brava! Se calhar... Agora, já não é o mesmo! Agora há
a Internet, o Big Brother, ninguém diz "um coche", e os "velhos" passaram
a "cotas"! Mas a escola continua lá, ainda atrás da paragem de
um autocarro que chega sempre atrasado. Há coisas que não mudam!
Se calhar... Agora os putos têm um pavilhão desportivo, e já
não precisam de fingir que são o Luís Figo num pátio
com umas balizas improvisadas. Se calhar... Já não enrolam mortalhas,
tomam pastilhas! Se calhar... O heavy deu lugar ao techno, mas
os gajos de certeza que devem ser os mesmos, e continuam sem saber tocar. Se
calhar... Até já meteram aquecimento nas salas de aula. Pois!
Se calhar..." (Marcantonio Del-Carlo, no programa).
Conheço um mundo de artifícios de psicologia
e de didáctica para tornar a aprendizagem mais eficiente. Aprendizagem
mais eficiente: mais sucesso na transformação do corpo infantil
brincante no corpo adulto produtor. Mas para saber se vale a pena seria necessário
que comparássemos os risos das crianças com os risos dos adultos,
e comparássemos o sono das crianças com o sono dos adultos. Diz
a psicanálise que o projecto inconsciente do ego, o impulso que vai empurrando
a gente pela vida afora, esta infelicidade e insatisfação indefinível
que nos faz lutar para ver se, depois, num momento do futuro, a gente volta
a rir. Sim, diz a psicanálise que este projecto inconsciente é
a recuperação de uma experiência infantil de prazer. Redescobrir
a vida como um brinquedo. Já pensaram no que isto implica? É difícil.
Afinal de contas, as escolas são instituições dedicadas
à destruição das crianças. Algumas, de forma brutal.
Outras, de forma delicada. Mas em todas elas se encontra o mote: a criança
que brinca é nada mais do que um meio para o adulto que produz (Rubem
Alves, no programa).
"TeatralRadical ? último Tempo", realizado em estreita
colaboração com a Câmara Municipal do Porto, é um
projecto estruturante e central na actividade do Teatro Nacional S. João,
que procura fomentar a necessidade de uma fruição e de uma prática
artísticas no universo escolar, com o objectivo da criação
de mais e melhores públicos e, assim, dar um sentido de maior plenitude
à nossa actividade. Depois das oficinas de artes performativas e do Fóum
TeatralRadical - a Arte de Se Aprender -, entramos na terceira fase desta
aventura: "No dia em que a C+S fechou", do actor e encenador Marcantonio Del-Carlo.
Uma nova dramaturgia portuguesa que ousa questionar uma das instituições
mais paradigmáticas que o Homem inventou - a Escola - e que, com
a evolução da sociedade, nomeadamente a democratização
do ensino, se tem vindo a problematizar. O mundo lá dentro não
é mais do que uma representação do mundo cá fora.
Um espectáculo com um conjunto de jovens actores ao lado do "veterano"
António Fonseca, que conhece aquilo que representa (suprema felicidade!),
que nos confronta com um universo que já vivemos ou que estamos a viver
- a adolescência! Território existencial intermédio, expectante,
entre a infância e a idade adulta. Momento de dúvidas e inquietações,
em que já muita coisa se sabe, mas em que quase tudo se decide (José
Wallenstein, no programa).
Vandalização do carro do presidente do Conselho
Executivo, um estalo numa professora, uma pichagem na parede, computadores destruídos,
uma cadeira atirada pela janela, um extintor atirado à cabeça
de uma colega -seis gestos desesperados de "rebeldia"; seis jovens incompreendidos,
em conflito com a Escola e consigo próprios; seis histórias de
vida sem valor matricial único; seis realidades distintas sintetizadas
num espaço escolar transposto para um palco onde a figura do professor
não aparece, se não apenas por referência.
O "contínuo" é o mediador entre os alunos e o
mundo adulto (o senhor doutor Fonseca) e o representante da razão aos
olhos dos professores-público, que identificam protótipos de alunos:
a parva, o malcriado, o coitadinho, o Zeferino, a Judite... É ele, também,
o regulador de atitudes: Julgas que és o maior, não é?,
mas não vês que ninguém te respeita? Os teus colegas têm
é medo de ti, percebes?, não te respeitam. Tu sozinho não
vales nada; tens que deixar que gostem de ti. Eu também fui como tu,
e olha o que sou hoje - ando aqui a apanhar o lixo que tu e os teus colegas
fazem, a limpar o teu mijo...
Toxicodependência, afectividade, inconformismo, sexualidade
e auto-estima, são os ângulos de observação do autor
e encenador - a complexidade das relações entre a instituição
de socialização e o indivíduo em formação
é o pretexto para Marcantonio Del-Carlo dissertar sobre fenómenos
de violência e de identidade que se (re)produzem e desenvolvem na Escola.
Se a Escola existe, é porque há alunos. E se
os alunos não gostam dela, o que fazer? O que é preciso é
fazer uma revolução, é revolucionar esta merda toda! Mas
como? Não sei... Mas nós somos diferentes, não somos? Então
vamos embora, e os gajos que se lixem.
Ser diferente, mas como enunciar (e lidar com) a diferença?
Revolucionar, mas como? Mais do que pensar na mudança, trata-se de pensar
uma Escola nova - não, "No dia em que a C+S fechou" não dá
respostas; porque esse não é o propósito de um teatro que
se afirma como ferramenta potenciadora da interrogação.
António Baldaia
N.R. "No dia em que a C+S fechou"é
uma produção do Teatro Nacional S. João, do Porto, onde
esteve em cena até 8 de Abril, no âmbito do festival PO.N.T.I.
Nos debates que se seguiram a cada representação, emergiu sempre
a utilidade de levar este espectáculo a outros palcos, a outros alunos
e professores, a novos públicos. Quererá o TNSJ pensar no assunto?
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