No contexto da abordagem da questão da disciplina e da violência
na escola, alguma reflexão sobre a nossa quota parte na produção
do fenómeno constituiu o escopo da última crónica. Hoje
proponho-me fazer trazer aqui uma pequena ilustração do processo.
A popularização de que vem gozando a consigna
publicitária "tolerância zero" não parece derivar
apenas de uma nossa particular sensibilidade ao risco da velocidade automóvel,
nem da elegância estatística de que a expressão se reveste,
mas do que poderíamos designar por "espírito do tempo".
Se bem que a metáfora "espírito do tempo" seja uma espécie
de albergue espanhol argumentativo, o que aqui interessa é a sua competência
para exprimir a ideia de que a consciência social, enquanto fonte de regulação,
afinal, não é uma propriedade humana comummente distribuída
e participada por todos os membros da sociedade e, portanto, há que reafirmar
a supremacia dum princípio de ordem, cuja legitimidade não se
discute.
O facto de a "tolerãncia zero" indiciadora
deste "espírito do tempo" ter encontrado o seu terreno de eleição
no domínio da circulação automóvel não é,
evidentemente, alheio a esta preocupação da indiscutibilidade
do princípio de ordem. Trata-se dum domínio onde os "factos
falam por si", o que quer dizer que onde há sinistralidade automóvel,
há responsabilidade subjectiva. Esta "demonstração"
de relação de causalidade material e eficiente concorre não
apenas para legitimar a intervenção jurídica e administrativa,
como sobretudo para desenvolver e reforçar a consciência social
de que os comportamentos individuais são os factores responsáveis
pelos "desmandos" sociais.
A subjectivação da culpa (ou pelo menos da responsabilidade
pessoal), à medida que se torna um lugar comum de recurso para explicar
a sinistralidade automóvel, faz parte do processo de intervenção
jurídica do Estado que, assim, se torna tanto mais legítima quanto
os riscos materiais, sociais e psicológicos sejam socialmente incontroláveis.
Como se dá por impossível decretar a "tolerância zero"
para os mecanismos sociais e económicos que potenciam esses riscos (desde
os que influenciam o teor das decisões políticas até à
maximização do lucro e à manipulação de toda
a espécie de sentimentos), a tendência para regular a vida social
a partir da responsabilização individual torna-se cada vez mais
"natural", uma vez que há cada vez mais condições
objectivas que vão no sentido da produção de comportamentos
individuais de risco, o que, evidentemente, suscita a necessidade de os regular.
Diríamos que a normatividade jurÌdica se torna cada vez mais invasiva
da estrutura individual dos comportamentos, problema que, aliás, constituiu
a preocupação da biopolítica foucaulteana.
Daqui resulta que é cada vez maior a tensao entre subjectividade
e normatividade, ou se quisermos, entre o mundo da vida e o mundo totalmente
administrado que é justamente o mundo da tolerância zero.
A frequência com que se vem reclamando a aplicação
da consigna na escola dá que pensar...
Manuel Matos
Universidade do Porto
|