A exposição de fotografia começava a ser retirada, nesse
dia, do polivalente. Nascera do projecto de Área-Escola da turma de Artes
do 11º ano e, pelo que se via e ouvia, não tinha deixado ninguém
indiferente.
Continuava a sobreviver a galhofa ingénua e áácida
dos mais novos que não deixaram de aproveitar a oportunidade para se
banquetearem com um festim de piadas alarves e grosseiras. Resistira a língua
viperina da Dona Rosa. Aguentou-se, com elegância, perante os comentários
condescendentes de uns e a indiferença, mais ou menos disfarçada,
de muitos outros.
Era possível reconhecer, no entanto, um ou outro
olhar mais atento e solidário, quem sabe se enternecido, de alguém
aprisionado na foto do beijo fotografado junto do portão da escola. Por
vezes viam-se, igualmente, pequenos grupos de jovens a discutir as fotografias
dos grafittis. Comparavam-nos, expressavam as suas preferências
ou tentavam localizá-los na geografia restrita do mundo que quotidianamente
percorriam. Na sala de convívio dos professores, a exposição
serviu também de pretexto para algumas conversas sobre a importância
educativa daquele tipo de actividades, uma ou outra manifestação
de surpresa pelo trabalho de alguns dos alunos envolvidos ou a má-
-língua de sempre sobre tudo o que fosse inédito, diferente e
arrojado. A presença dos pais para, propositadamente, verem a exposição
foi algo que, pelo menos, não escapou aos filhos. Para alguns deles,
era a primeira vez que a visita dos progenitores a escola nada tinha a ver com
queixas ou más notÌcias.
A turma e o professor responsáveis pela iniciativa
mostravam-se, por seu turno, bastante satisfeitos com a obra realizada. Tinham
conseguido erguer um projecto que os obrigou a dar o melhor de si, demonstrando
que as actividades escolares podiam ser algo mais do que aulas enfadonhas e
a angústia cíclica dos testes em volta dos quais parecia girar
toda a vida da escola. É que a exposição, gostassem os
outros dela ou não, tinha-os desafiado a olhar para si, para os outros,
para os espaços onde co-habitavam. Permitira-lhes ter voz e ser objecto
privilegiado da atenção dos colegas, dos professores e dos funcionários
nos dias em que a exposição permaneceu aberta. O que tinham realizado
marcara, se bem que de modo efémero, a vida na escola e isso fizera-os
sentir-se bem.
José Augusto, o coordenador do projecto, não
podia deixar de ficar indiferente a este ambiente de euforia entre os seus alunos.
Não era a primeira vez que se lançara numa iniciativa idêntica
aquela e, tal como das outras vezes, achava que tinha valido a pena todo o trabalho
que tinham tido. Era professor de Geometria Descritiva e, neste ano lectivo,
calhara-lhe em sorte a responsabilidade pela coordenação do projecto
de Área-Escola daquela turma. Sabia o que o esperava, a começar
pela relutância dos alunos face a este tipo de iniciativas, e por isso
decidira propor-lhes uma coisa ousada que lhes permitisse não só
potenciar os seus interesses e competências pessoais, como também
proporcionar-lhes uma experiência de trabalho significativa que se relacionasse
com a área de estudos pela qual tinham optado. Sabia que a escola tinha,
encaixotados, os apetrechos necessários para montar um laboratório
de fotografia, tinha experiência e saberes nessa área e, por isso,
decidira desafiar aqueles alunos a realizar uma exposição fotográfica.
Somou o número de máquinas de que podiam dispor, falou com o presidente
da Associação de Pais, indagando qual a sua disponibilidade para
conceder algum apoio financeiro e logÌstico à iniciativa, e lançou
mãos a obra. Aceite a proposta pelos alunos, entre um misto de admiração
e perplexidade, pô-los, de imediato, em contacto com a magia do trabalho
no laboratório e, como esperava, o entusiasmo dos miúdos jorrou
borda fora. Aproveitando a maré, decidiu discutir com eles as fotografias
do álbum de Sebastião Salgado, Terra, e não deixou de ficar
surpreendido tanto com o que ouviu dizer, como com o modo como foi dito. Lançados
os dados, meteram-se todos de alma e coração numa aventura inolvidável,
apesar dos tropeções, das dificuldades e dos impasses que, por
vezes, pareciam travar o projecto.
Assim, numa manhã de Maio, a escola acordou com
metade do seu polivalente ocupado. Fotografias a preto e branco, legendadas,
mostravam, de uma forma despojada, o que aquelas raparigas e aqueles rapazes
foram capazes de ver e de registar. Não eram obras primas, mas sentia-se,
pelo menos nalgumas delas, um pulsar que certamente animara a feitura de muitas
obras primas. Faltava-lhes, certamente, em apuro técnico, o que lhes
sobrava em comunicabilidade e pressentia-se que por detrás de cada cliché
existia algo que esse mesmo cliché aprisionava. Três das
fotos expostas talvez estivessem um pouco desfocadas, mas a opção
por seleccioná-las, e expô-las, surgiu de uma discussão
séria e cuidadosa no seio do grupo. Uma, era a de um arrumador de carros
conhecido nas redondezas. Noutra, podia ler-se uma declaração
de amor pirosa, pintada numa das paredes do ginásio. A terceira, mostrava
a guarita vazia da porteira da escola.
Enquanto os alunos desmontavam cuidadosamente os painéis,
José Augusto observava o seu único contributo para a exposição.
Uma foto de dois rapazes, sorridentes, descendo umas escadas com os braços
sobre os ombros um do outro. Um momento de sorte, pensou. Lembra-se que esperava
por alguém a porta da biblioteca, quando viu, no outro lado do átrio,
os dois miúdos a sair de uma sala. Bem dispostos, expressavam através
de gestos ágeis, e contidos, feitos de toques breves, fintas e fugas,
um momento de cumplicidade que o cativou. Levou a mão ao bolso, e quase
que por instinto, puxou da sua pequena Canon, enquadrou-os no visor, esperou
pela luzinha verde e disparou. Quando mostrou o retrato aos alunos, já
não se lembra muito bem qual foi a explicação que encontrou
para justificar o seu gesto e a intenção que o animou. Mesmo agora,
olhando novamente para aquela fotografia, sentia que estava, mais do que perante
um texto, perante um pretexto. Uma oportunidade para entrar no que sabia ser
o outro lado do espelho de uma escola que, fazendo repousar, em todos os que
a percorrem, o peso insustentável de um quotidiano tantas vezes sem sentido,
nos permite que nos encontremos, ocasionalmente, uns com os outros, num reencontro
que, afinal, nos ajuda a que nos descubramos como pessoas.
"professor, podemos começar a tirar estas fotografias do painel?"
Rui Trindade
Universidade do Porto
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