De um momento para o outro, a violência parece ter invadido
as escolas portuguesas. Os relatos de agressões e de vandalismo fizeram
durante algum tempo as primeiras páginas dos jornais, dando a impressão
de se estar a viver um autêntico estado de sítio. As televisões
mostraram escolas equipadas com câmaras de vigilância que, afinal,
não serviam para controlar desacatos entre alunos, mas sim para identificar
os autores de assaltos às escolas, esses sim cada vez mais frequentes.
Mais uma vez, os "opinion makers" da capital, baseando-se no
cenário vivido em algumas zonas problemáticas das áreas
urbanas da Grande Lisboa e do Grande Porto, declaravam que a escola estava a
viver uma crise de valores. Mas será realmente assim? As escolas portuguesas
são tão violentas como se diz? Estará a chegar-se ao dia
em que os alunos só entrarão na escola depois de passarem por
um detector de metais, como acontece em muitos estabelecimentos de ensino dos
Estados Unidos?
Em Portugal, não existia, até há pouco
tempo - e continua a não existir de forma sistemática - qualquer
investigação que caracterize com relativa exactidão o que
se passa nas escolas neste domínio. As únicas excepções
são dois estudos parcelares (um da responsabilidade do Instituto de Estudos
da Criança da Universidade do Minho - cuja amostra se limitou a 18 escolas
do distrito de Braga -, e um outro coordenado por Daniel Sampaio e uma equipa
de investigadores, no âmbito do Programa de Promoção e Educação
para a Saúde), mas nenhum deles realizado no sentido de caracterizar
comportamentos, contextos e pessoas envolvidas em situações consideradas
violentas no meio escolar.
Em 1996, no âmbito de um protocolo celebrado entre o
Instituto de Inovação Educacional e a Universidade do Porto, Emília
Costa e Dulce Vale, investigadoras da Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da UP, iniciaram um estudo a nível nacional
em 142 escolas dos 2º e 3º ciclos do ensino básico e do ensino secundário,
num total de 4925 alunos distribuídos pelos 8º e 11º anos de escolaridade,
que ficou concluído em 1997. Apesar de as próprias autoras o considerarem
essencialmente de "carácter exploratório" e de preconizarem a
necessidade de uma análise numa perspectiva de desenvolvimento-sistemática,
ele constitui, ainda assim, o mais completo quadro de referência para
abordar esta questão.
Nele, e antes de se iniciar quaisquer considerações
de carácter metodológico e de análise de resultados, alerta-se
para o facto de a violência não poder ser entendida como um conceito
único, remetendo-se para domínios tão diversificados como
"a assertividade e outras competências sociais à delinquência,
passando pelos comportamentos disruptivos ou anti-sociais, pela simples hiperactividade
ou pela violência e vandalismo (...)".
Assim, quando se fala de violência deve atender-se aos
diferentes conceitos que lhe estão associados, muitas vezes sobrepostos
entre si: vandalismo (destruição ou degradação gratuita
de objectos), "bullying" (termo anglo-saxónico que denomina, grosso modo,
"implicar com as pessoas"), agressividade, perturbações de comportamento,
passagens ao acto (entendidas como um meio de expressão de angústias,
associada à adolescência, ), comportamentos de oposição
(total falta de cooperação com a "autoridade" de pais e professores),
perturbação da atenção com hiperactividade; comportamento
delinquente; défice de competências (problemas de comportamento
por incapacidade para lidar com essa situação ou a inedaquação
das competências utilizadas) e factores desenvolvimentais vários
(próprios da adolescência, como o sentido de grupo e os comportamentos
adquiridos sob essa influência recíproca).
Para lembrar o "carácter normativo" deste último
conceito, aliás, as autoras citam uma expressão retirada de uma
obra de um investigador anglo-saxónico, onde se refere que já
no século V a.c. um autor grego afirmava: "os jovens de hoje adoram o
luxo; não têm maneiras, ridicularizam a autoridade e não
têm nenhum respeito pelos seus progenitores. Os filhos são verdadeiramente
uns pequenos tiranos. Já não se levantam quando uma pessoa de
idade entra na sala onde estão, contrariam os pais, estão à
mesa como glutões e fazem a vida um inferno aos professores".
A violência é uma "parangona"
Segundo o estudo conduzido por Emília Costa e Dulce
Vale, a influência de variáveis institucionais, para além
das individuais e familiares, é um dos "domínios de importância
fundamental" para explicar a ocorrência de actos violentos no meio escolar.
Recorrendo a estudos similares de autores estrangeiros, refere-se que, "contrariamente
ao que é difundido", estes apontam para a "inexistência de um efeito
significativo do tamanho da escola ou do tamanho médio das turmas, o
mesmo acontecendo com a diversidade étnica". No entanto, adianta-se,
"parece haver uma maior incidência de problemas de agressão em
escolas de áreas desfavorecidas, mas não necessariamente rurais,
onde os problemas parecem ser inferiores aos de escolas de meios urbanos".
Partindo da sua experiência, Helena Carvalho, professora
de Português/Francês na Escola Secundária do Cerco, confirma
essa ideia. Ao longo da carreira passou por diferentes escolas e ciclos de ensino
e considera que existe uma diferença "substancial" entre os alunos dos
dois meios. No entanto, quer num quer noutro, os actos de violência e
de indisciplina devem-se geralmente ao mesmo motivo: alunos que "recusam o sistema".
E se nas zonas do interior a figura do professor ainda é "respeitada"
e consegue exercer alguma influência, nos meios urbanos ela está
"completamente degradada".
Arménio Cordeiro, professor de educação
física na mesma escola, considera, por seu lado, que os actos de violência
entre alunos podem ser entendidos como "disputas normais" de adolescentes, que
só em raras ocasiões chegam a "vias de facto". "Sempre existiu
este tipo de violência na escola, ela não é novidade para
ninguém".
Os alunos parecem concordar. "Não existe mais violência
e indisciplina aqui do que noutras escolas. Esta já foi uma escola problemática,
mas agora é absolutamente normal. E quando há algum problema entre
os alunos, normalmente não se passa dos insultos. 'Andar à porrada'
já não se usa...", diz Nuno Pinto, de 19 anos.
Já Ricardo Nogueira, de 13 anos, tem uma opinião
diferente. Para ele, que é do "bairro" - situado na freguesia mais desfavorecida
do Porto e referenciado habitualmente como um dos mais problemáticos
da cidade -, a escola não constitui um problema, mas admite que para
outros alunos a convivência seja por vezes um pouco "difícil".
Não explica é em que medida, limitando-se a encolher os ombros
quando questionado. Por seu lado, Filipa Gonçalves, de 18 anos, acha
que os actos violentos entre alunos se limitam aos mais novos e se devem essencialmente
a "rivalidades". Os alunos mais velhos, garante ela, resolvem os problemas com
calma. "Aqui há mais mentalidade", sublinha.
Ainda na opinião destes dois alunos, o "ambiente familiar"
contribui decisivamente para o comportamento na escola. A Filipa afirma que
"no bairro as pessoas resolvem conflituosamente as questões e isso é
transmitido aos filhos". Um cenário que se pode repetir em outros contextos,
é sabido, e que as investigadoras reforçam na sua tese, referindo
que, independentemente do meio sócio-económico, "a agressividade
e hostilidade por parte dos jovens pode ser o resultado da exposição
a certas atitudes e comportamentos em casa, nomeadamente o uso habitual da punição
física, que ensina que a agressividade é um modo aceitável
de resolução de conflitos". A hereditariedade é outra das
hipóteses levantada por alguns investigadores, mas a este respeito os
dados são inconclusivos.
"Acho que não se pode afirmar que exista uma presença
generalizada da violência na sociedade e nas escolas. Isso é uma
'parangona'. Existem, isso sim, focos de violência localizados, que reflectem
essencialmente o meio onde se situam", diz Fátima Pinto, presidente do
conselho executivo da secundária do Cerco.
Violência ou indisciplina?
Apesar de tudo, os números relativos à violência
nas escolas apresentados neste estudo não podem ser encarados com tranquilidade.
De acordo com os resultados a agressão de que os alunos portugueses mais
referem ter sido vítimas é a física e a verbal: 63% dos
alunos referem já ter sido empurrados, 29% referem já ter sido
batidos, 67% foram insultados e 54% já foram ameaçados com palavras
ou gestos. As autoras referem-se ainda ao "número elevado" de raparigas
que refere ter sido alvo de comportamentos indesejados com conotação
sexual, sem, no entanto, especificar esse valor. Um aluno em cada dez já
foi abordado no sentido de adquirir ou consumir drogas e um em cada quatro refere
ter sido assaltado, roubado ou vítima de destruição de
propriedade.
Globalmente, os agressores mais referidos são os próprios
colegas, seja no interior ou no exterior da escola, permitindo ainda a análise
dos resultados mostrar que uma pequena percentagem de "outras pessoas da escola"
são referidas como agressores, sobretudo em termos físicos e verbais.
Importante é também o facto de uma percentagem, ainda que pequena,
de pessoas estranhas à escola agredirem física e verbalmente os
alunos, sendo vistos a consumir drogas ou bebidas alcoólicas e a praticar
actos de vandalismo contra os bens da escola.
De todas as regiões consideradas, é no Litoral
Centro que os alunos mais referem ter sido vítimas, na escola, de comportamentos
como agressões físicas, empurrões (que não a brincar),
ameaças verbais, assalto ou roubo de objectos e destruição
de objectos pessoais. Quanto ao local onde ocorrem, as agressões são,
em geral, mais frequentes no interior da escola.
De um modo geral, os alunos mais vítimas de agressão
física e verbal e de actos de vandalismo são os do 8º ano e rapazes.
No entanto, são as raparigas as maiores vítimas de violência
sexual. Estes resultados, salientam as autoras, vão de encontro ao que
normalmente é apontado na literatura e investigação sobre
o tema, segundo a qual as principais vítimas da generalidade dos comportamentos
referenciados são os alunos mais novos e do sexo masculino.
De qualquer maneira, e apesar de reconhecerem que estes números
não podem ser ignorados, os professores contactados pela Página
preferem destacar a indisciplina como o principal problema das escolas. Nesse
sentido, Fátima Pinto reconhece que ela hoje está mais presente,
"mas não de forma irreverente, como antes acontecia", e poderá
dever-se à "desarticulação entre o que se pretende
incutir na escola e o que os alunos recebem das famílias".
"Claro que a violência não é uma falsa
questão, até porque está instalada na sociedade e reflecte-se
necessariamente na escola. Mas considero que em algumas situações
ela é empolada pela comunicação social e possa dar a ideia
de que é generalizada", afirma Daisi Leitão, presidente do conselho
executivo da escola secundária Carolina Michaelis. "Este ano já
tivemos quatro ou cinco alunos que foram castigados por participarem em actos
que consideramos violentos, mas estamos longe de isso constituir uma situação
rotineira e grave".
Neste capítulo, aliás, as autoras referem que
"a impulsividade e a energia características destas idades são
também algo a considerar e a ter em conta na reacção dos
adultos e na sua actuação com os jovens, levando-os a questionar
o "rótulo" de violência quando pode estar em causa algo
completamente distinto". Mais: "Estas dimensões comportamentais
parecem-nos de relevo, principalmente se pensarmos que a maioria das escolas
não possui actividades para a ocupação dos tempos livres
dos alunos, que muitas das actividades de complemento curricular não
vão ao encontro dos seus interesses e, mais grave ainda, que muitas escolas
não possuem condições físicas para a prática
de educação física e muito menos para a prática
de qualquer desporto (...)".
Em jeito de conclusão, Emília Costa e Dulce Vale
afirmam que "independentemente da abordagem seguida ou da especificidade
das actuações" - lembrando que são mais numerosas
as reflexões teóricas do que a apresentação de verdadeiras
estratégias de intervenção - "nunca é demais
destacar que elas não devem ser desligadas de uma abordagem global da
escola e, particularmente, das relações no seu seio, apoiadas
numa constante aprendizagem da convivência. Este sim, talvez o verdadeiro
"antídoto" para a violência (...)".
Ricardo Jorge Costa
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