Muita gente, em Portugal, desconhece a vida de Joseph Beuys. E aqueles que
conhecem a sua obra, conhecem-na desligada de todo o contexto em que foram criadas.
As obras expostas nas galerias e nos museus não passam de cadáveres
das "Acções" cujo sentido tem sido ocultado e apagado pelos críticos
formalistas que tomam a nuvem por Juno. As suas obras pictóricas ou as
suas esculturas, as suas instalações eram apenas pretextos para
a criação de foruns para debates.
A sua "arte feia" é uma espécie de contra-imagem, geradora de
evocações simbolizadas pelos objectos expostos. O artista é
o sujeito capaz de evocar o significado, apenas grosseiramente enunciado por
aquele simples expediente com que toda a gente pode provocar a arte nos outros,
ou seja, viver criativamente a vida "desocultando" o que está apenas
escondido. Com materiais e instalações simples, pretende provocar
interpretações simbólicas e culturais singulares, reacções
de todos os que são capazes de construir a visão artística
do que apenas foi enunciado.
O "artista" fazedor apaga-se para enaltecer o artista decifrador, que ocupa
agora o lugar na divina criação daquilo que foi apenas a modesta
aparência ou sombra da realidade que é a vida quotidiana. Trata-se
da inversão do mito da caverna de Platão. Antigamente o artista
era o personagem que, através do "ícone sublime", fazia aparecer
a divindade no público considerado como incapaz de comparticipar da beleza
dos deuses, própria aos divinos artistas. Agora, trata-se de uma demissão
do papel divino do fazedor de arte, para que caiba aos outros o papel de criadores
autónomos. Mas não se pretende apenas essa reviravolta do sujeito
objecto. Trata-se agora da possibilidade de toda a gente poder participar neste
duplo jogo de produzir e usufruir da arte, transpondo este passo que separa
o artista do não artista.
Dantes, a arte fazia consumir um imaginário totalmente elaborado pelo
artista, obrigando o fruidor a delimitar-se a uma proposta definida.
A artisticidade de Beuys é o quotidiano, acessível a toda a gente,
processo contínuo, obra aberta para todos os imaginários que na
participação, no debate e na acção solidária
vão criando mudança de vida.
Percebendo a fundamentação do seu pensamento e reconhecendo a
autenticidade da sua vida, podemos compreender melhor o alcance da sua obra.
A guerra representou, certamente, na sua vida um elemento central. Beuys, ele
próprio, "designou o tempo de guerra uma experiência cultural e
como artista pôde incorporá-la na sua obra" (in Joseph Beuys -Heiner
Stachelhaus -ParsifalEdiciones, Barcelona 1990).
Primeiramente, a situação de suportar uma guerra como um destino
na frente militar. Soldado raso, não queria submeter-se às regras
de obediência, porém, obrigado pela "máquina de guerra",
enfrentou a experiência da morte. No Inverno de 1943, como telegrafista
num bombardeiro de combate, teve um acidente. O avião depois de atingido
pelos canhões antiaéreos de uma base russa, despenha-se na Crimeia,
durante uma tempestade de neve. Beuys é o único sobrevivente.
Está gravemente ferido. Uma fractura craniana, costelas, pernas e braços
partidos.
Quando está à beira de morrer, um grupo de tártaros nómadas,
que transitavam por esse lugar, acolhem-no. Cobrem-no primeiro de gordura e
aconchegam-no depois com panos de flanela. E, num ambiente mágico, os
"chamanes" da pequena tribo de nómadas curam-no milagrosamente. Beuys
vivencia essa presença "chamánica" como algo de exemplar e significativo
para a sua vida e obra. Daí a importância constante da gordura
e do feltro, materiais com os quais os "chamanes" o envolveram para o curarem
das queimaduras e traumatismos sofridos com o acidente. Daí a constante
atitude de profundo respeito pela natureza e pela espiritualidade cósmica.
A relação com a tribo nómada quase o leva a optar por
ficar para sempre nesse grupo de tártaros. Porém, para Beuys,
a ligação à natureza não é chamánica.
É uma espiritualização do futuro, como na antroposofia
que subjaz à sua formação. A pesquisa espiritual de Beuys
não procura no passado. Integra o passado espiritual num projecto de
futuro. Uma espiritualidade consciente e não atávica; não
adquirida mas construída... Ultrapassar o irracional e o racional, através
de uma procura em que o "oculto" se torna "manifesto".
Assim, o destino é outro. A sua ligação com a natureza,
com a fauna e a flora vai agora mais longe. Não são apenas os
estudos que fizera, ainda rapaz no Alto Reno, que constituem a sua formação
científica.
Em 1941, Beuys com 20 anos, toma conhecimento da obra de Rudolf Steiner, através
do seu amigo Fritz Rothemburg que viria a morrer no campo de concentração
de Gachsennhausen, em 1943. Joseph Beuys frequentou os grupos de antropósofos
em Dusseldorf. Por essa altura retém a ideia da "unidade na multiplicidade",
dos quatro níveis do homem: corpo físico, corpo etérico,
corpo astral e o "Eu". A relação que estabelece com a natureza
vai marcar a influência da antroposofia de Steiner.
A abelha e a lebre são imagens plásticas na sua obra que se referenciam
à gordura e ao feltro, da sua experiência durante a guerra e que
integram a polaridade metabolismo e neuro-sensorial na filosofia de Steiner
.
Também o "conceito ampliado de arte", a plástica ou a "escultura
social", traduzem uma ideia latente na problemática estética de
Rudolf Steiner - arte como totalidade da vida. E ainda, a perspectiva de que
"cada homem é um artista" sublinha a estratégia pedagógica
de Rudolf Steiner, que ao fundar o movimento das Escolas Livres Waldorf, pretendia
uma formação que integrasse a actividade artística como
elemento essencial do programa curricular.
Joseph Beuys ao fundar ainda a "Universidade Livre Internacional" procurou
através das "acções" e "instalações", organizar
um movimento que, para além de uma estratégia cultural, articulasse
os princípios da tripartição social de Steiner: liberdade
total ao nível da cultura e aspirações espirituais, igualdade
jurídica ou idênticas oportunidades sociais e fratemidade económica
ou cooperação nas necessidades vitais.
Este relacionamento de Joseph Beuys com a antroposofia não é
isento de controvérsia. Beuys tem um pensamento próprio sobre
o olhar e a reflexão que integra na construção da sua própria
pessoa.Estão presentes na sua concepção, muitas outras
influências, tais como Kierkegaard, Nietzche e Marx. Ainda como influência
literária na sua vida é patente a presença de Goethe/Schiller,
Hoderlin, Novalis. Na arte, nota-se a marca do escultor Wilhelm Lehmbruck e
do pintor Eduard Munch.
As colecções de botânica e ainda os conhecimentos que obteve
no contacto pessoal com Heinz Sielmann (que veio a ser célebre cineasta
da natureza e colaborador do etologista austríaco Konrad Lorenz) tomaram-no
um profundo conhecedor da ecologia. E este conhecimento vai desenvolver-se ao
longo da sua vida. Fundador do movimento dos verdes ele pretende imprimir a
este grupo não apenas um papel político em estrito senso mas considerar
a ecologia como mais do que defesa do ambiente. Transformar a política
em arte. Daí a arte alargada como intervenção social. "Este
conceito alargado da arte revoluciona não somente os conceitos burgueses
da arte e da ciência materialista, mas renova também a actividade
religiosa" (in "Joseph Beuys", Há Vinh Tho, Ed. Triades, 1991).Beuys
organizou várias acções culturais que expressam toda esta
nova filosofia de arte que defendeu. Vamos dar alguns exemplos:
O "Das Kapital Raum" (1970/77) pretende ser um processo itinerante de desencadear
múltiplas acções em vários locais.
Estas acções contêm várias formas de intervenção:
Foruns que levam a debates participados e a decisões assumidas em democracia
directa, tendo em vista a transformação da vida cultural e urbana.
Trata-se de uma exposição portadora de múltiplas mensagens.
Compreender esta exposição é entender um processo que caracteriza
a atitude filosófica de Beuys.
Em primeiro lugar é uma exposição que se metamorfoseia
nos vários modos como vai transitando no tempo e nos vários locais
onde é apresentada. "O acto criador é uma inspiração
única e singular que pertence ao momento presente.
E é por isso que não pode ser simplesmente repetida" (Beuys in
idem). Estabelece uma relação de alternativa aos museus que albergam
a própria exposição. "O museu é laboratório"
(in Beuys -Das Kapital Raum, Franz Joacquim Verspohl, Ed. Adam Biro, Paris,
1989), porque experimentará novas formas de articulação
de artisticidade em mudança e que aspira a não ficar emparedada.
Precisa, no entanto, de referências ou receptáculos mutáveis
para encetar ambiguidades, conflitualidades e polaridades que a tornem visível
porque a arte social, defendida por Beuys, é movimento, metamorfose e
vida.
A sua exposição toma-se itinerante e nunca se mantém igual.
Evolui em cada exposição. Opõe-se à função
museológica tradicional, pois não pretende mostrar a obra estática
e acabada! Mostra instrumentos, explicita um "atelier" de intervenção
cultural: há um conjunto de painéis, sinais e diagramas. Há
uma mostragem de objectos quotidianos: uma banheira de zinco onde Beuys lavará
os pés a alguns dos visitantes da exposição, numa das acções
que desenvolveu. Procura aí, "cristicamente", agradecer e enaltecer a
fraternidade daqueles que lhe dão a importância de participarem
na acção que propôs, como na referida exposição
anti-museológica, iniciada no museu suíço de Zurique.
Existem ainda gravadores, machados e um piano. Beuys explicita essencialmente
o processo instrumental e não a obra acabada E, com a intervenção
pedagógica, estes instrumentos tornam-se operativos nos múltiplos
"happenings".
Num outro exemplo de "performance", nos Estados Unidos da América, -
"Coyote. I like America and America likes me" - Beuys procura articular vários
arquétipos, para estabelecer sinais com significado profundo. O coiote
é um pequeno lobo, símbolo mágico dos índios da
América. Ao encerrar-se num espaço fechado em que procura o diálogo
com o animal selvagem, ele estabelece uma ponte entre o "cão e o lobo"
que se encontram no coiote e também no próprio homem. Esta performance
permite revelar a possibilidade de conectar as rupturas e de as "sanar" mostrando
que o paradoxal não é destituído de sentido. Ao contrário,
o paradoxo manifesta o real que é contraditório, em busca da criação
através do jogo, do humor e do amor.
Beuys afirma o conteúdo fundamental da sua mensagem artística
desta maneira:
- "Cada homem é um artista - a estética é o ser humano";
- "Deve haver uma relação entre o criador e o que usufrui -
viver é criar com e para a humanidade".
- "Conceito ampliado de arte - arte é a vida".
- "Deus e o mundo são arte - arte é ciência e ciência
é arte".
- "O uno é o múltiplo e o múltiplo é o uno."
Nestes simples aforismos, explicita-se a sua filosofia de arte e de vida.
Por isso Beuys considera que "a criatividade não é monopólio
das artes. (...) Quando eu digo que toda a gente é artista eu quero dizer
que cada um pode concentrar a sua vida nessa perspectiva: pode cultivar a artisticidade
tanto na pintura como na música, na técnica, na cura de doenças,
na economia ou em qualquer outro domínio... A nossa ideia cultural é
muitas vezes redutora. O dilema dos museus e das instituições
culturais é que limitam o campo da arte, isolando-a numa torre de marfim
(...). O nosso conceito de arte deve ser universal, terá que ter uma
natureza interdisciplinar com um conceito novo de arte e ciência" (1979
- entrevista com Franz Hak).
Vale a pena explicar ainda outras acções paradigmáticas
que Beuys levou a cabo.
Em 1982, em Kassel, faz uma exposição como "pretexto" para o
desenvolvimento de uma "acção". Após uma longa discussão
sobre o homem e a árvore, onde se abordam múltiplas aproximações,
desde a mitologia à antropologia e ecologia, Beuys e as várias
dezenas de pessoas plantam 7000 castanheiros. "Plantando árvores, as
plantas plantam-se também em nós. Assim coexistimos, sendo um
no outro".
Ainda na América, Beuys passa várias horas na tenda de um índio
revelando solidariedade e uma profunda compreensão antropológica
pelas minorias encerradas nas reservas americanas.
Durante um comício de ecologistas, faz uma escultura com o papel proveniente
dos panfletos e cartazes que pejavam o chão, onde se realizou o comício.
Mostra assim que não bastam estratégias formais de afirmação
de uma vontade de mudança. ? preciso que no modo de fazer a mudança
se manifeste exemplarmente o significado pretendido pela mudança. Essas
acções têm de ser acções exemplares, acções
que tocam nos arquétipos mais fundos do ser humano. "Acções"
que mobilizam energias de vontade, que implicam sensibilidade e propõem
a lucidez na estratégia.
Durante uma manifestação contra a poluição em 1971,
Beuys nada na zona poluída de Zuinder Zee.É um acto sacrificial
como uma greve de fome ainda mais gritante ou talvez a ternura pela natureza
doente.É uma natureza que morre por nós! Um acto, afinal, de compaixão
mas de terrível apelo à consciência da comunidade para dizer
que a morte de um lago é mais importante do que a simples morte de um
homem.
Utilizando os dotes de professor e orador, mimo e músico, Beuys imprimia
às suas "acções" uma notável clareza demonstrativa
das suas ideias. E, com os recursos estéticos da sua criatividade, procurava
na música, na cor e na teatralização, a força rítmica
e criadora de um processo social: "A arte não reside no resultado material
saído do processo artístico; na tela ou na escultura, mas na tomada
de consciência do potencial criador que se manifesta nessa ocasião.
A atenção deve afastar-se do objecto, para se encontrar sobre
a actividade interior da alma durante o acto criador" (in Tríades 1991,
Paris, Há Vinh Tho).
Joseph Beuys foi, durante a sua própria vida, sujeito a opiniões
contraditórias. Deixou-nos, porém, a sua vida singular como testemunho
de uma arte original. Os objectos que ele legou, alguns vendidos agora a peso
de ouro, as aguarelas ou os "objectos", pretextos pedagógicos das suas
"acções culturais", estão expostos em museus e galerias
de todo o mundo.
Embalsamaram talvez a vida própria das suas criações.
Mas, ao mesmo tempo, perpetuaram paradoxalmente memórias que continuam
subversivas quando decifradas novamente.
O movimento, o fluxo da sua vida e a metamorfose da sua arte nas múltiplas
acções colectivas a que chamou arte social, tinham que ver com
a sua figura de chapéu de feltro, com uma voz forte e os gestos de um
actor , lançando a força mágica e criativa da sua mensagem:
criar com e para os outros!
Essa voz e esses gestos continuam, mesmo depois da sua morte em 23 de Janeiro
de 1986, em Dusseldorf. É que a força seminal do seu projecto
não se esgotou no seu tempo.
Beuys é um Max Stirner da estética. A sua postura e a filosofia
da sua arte, exigem uma subversão ontológica de conceitos e de
atitudes. Exigem processos de ruptura culturais e civilizacionais que estão
a ser abalados com a transição do paradigma em que vivemos.
A questão ecológica, assim como a consciência planetária
que a população está em vias de consolidar em torno de
uma nova solidariedade gerada paradoxalmente pelo egoísmo da globalização
neo-liberal, concentracionária e destruidora da biosfera, é a
base objectiva e alargada para dar corpo ao pioneirismo de Joseph Beuys.
No ano passado, 2000, em Baltimore, começaram as plantações
no Patterson Park e no Carrol Park, com voluntários, apoiados pelos alunos
e alguns professores da Universidade e do Centro de escultura social de Minneapolis.
Trata-se da conquista e transformação de espaços públicos.
Este movimento de modificação da paisagem com árvores,
é uma intervenção participada da sociedade civil. É
a tradução dessa nova forma alternativa da arte e da política,
inaugurada pelos projectos de Beuys a que este movimento americano se referencia,
como bem explicita um dos seus principais animadores, David Levy Strauss.
Jacinto Rodrigues
Universidade do Porto
Bibliografia
- Stachelhaus, Heiner, "Joseph Beuys", Ed. Parsifal, Barcelona, 1990
- Beuys, Joseph, "Par la presente, je níappartient plus à
leart", Ed. Learche, França, 1995
- Beuys, Joseph, "Beuys in America", Ed. Stile, U.S.A., 1996
Filmes Vídeo
- "Joseph Beuys Films", Centre G. Pompidou, Paris
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