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Escola e Violência no Estado Securitário

Há, como toda a gente sabe, uma velha questão por resolver na história dos quebra-cabeças: a da precedência do ovo sobre a galinha ou desta sobre aquele. E a violência na escola? É a violência da sociedade que se infiltra na escola ou é esta que, por disfuncionamento interno, gera aquela? Interrogações difíceis à parte, uma coisa é certa: os temas da indisciplina e da violência na escola passaram a constar do menú com que a comunicação social alimenta diariamente o público, já um pouco farto do Casal Ventoso, da toxicomania juvenil e do Big Brother.

A insegurança tem vindo a converter-se em refrão obsessivo, não tanto fruto de alarmantes índices de catástrofe delinquencial, mas porque o Estado Securitário, forma histeriforme de governação que tem vindo a instalar-se no lugar do Estado Social, tem nela uma estratégia bem definida. Num dos filmes de Charles Chaplin um rapaz traquina partia vidraças com as pedradas saídas de uma fisga e logo atrás aparecia o diligente Charlot apregoando "vidraceiro!". A pacificação dos costumes, tarefa que todos os governos de todos os povos tiveram e têm de enfrentar, faz-se hoje à custa da encenação dum clima social em colapso, que o reforço da lei penal e o aumento do controle policial poderiam resolver. O preço do triângulo polícia - tribunal - penitenciária é altíssimo e significa um paliativo colocado a jusante da torrente; a montante disto, sobre o preço a gastar na educação, na requalificação de zonas dif?ceis pela melhoria dos equipamentos e das ofertas sócio-educativas, ou no combate à interioridade e ao isolamento, fazem-se apenas declarações de intenção e discursos de palanque.

Entre Escola e violência não há qualquer relação que possa ser procurada apenas no interior do binómio. Se hoje o ensino se converteu numa relação tensa entre professor e aluno e muitas escolas registam indisciplina e violência, não passa isto dum signo a juntar a outros que ilustram o decl?nio de um tipo de Estado - o que só podia ter como consequência arrastar consigo para uma profunda crise as instituições que durante os séculos da modernidade foram o seu emblema. Porque a lógica que as alimentou e que ajudaram por sua vez a alimentar transformou-se profundamente. Por exemplo, duma sociedade que adestrava para o trabalho industrial, incentivando à docilidade e ao "the one best way" do gesto laboral em nome da eficácia e da produtividade, passamos hoje a uma sociedade que incentiva o consumo e faz apelo à multiplicação de experiências pessoais, numa lógica que não é já a da integração social mas da fruição individual.

Há hoje um choque entre a Escola e os estilos de vida prometidos e incentivados pelo capitalismo avançado. Numa sociedade em que os espaços sociais naturais da vida urbana se retraem é natural que a cidade pareça um espaço de trânsito entre actividades: vamos daqui para ali, desta actividade para aquela, circulando rapidamente num teatro de ruas e veículos. O encontro, esse é cada vez mais o dos espaços do hiper-consumo, altamente regulamentados e vigiados. Os centros comerciais são a nova arena das sociabilidades, onde as famílias encontram o compromisso entre o convívio e o consumo.

O hipermercado é uma potente metáfora reveladora da confusão entre sociabilidade, lazer e consumo. Nesta esfera de néon e metais todo o desejo está o alcance desde que haja dinheiro. Neste clima de imediatismo - o consumo é o acto do imediato - torna-se difícil perceber a gratificação diferida, que nos ensinou como o saborear de alguma coisa é fruto do esforço. Os objectos do consumo estão prontos a usar e gastar e, por mais sofisticados que sejam, são de simples manejo e de quase nenhuma descodificação. Nesse caso, como perceber o interesse do longo treino em que se transformou o ensino, como perceber o esforço exigido pela Escola, como entender o esforço exigido pelo trabalho?

Ora, numa sociedade que glorifica o consumo e a posse mas que maquinizou a esfera produtiva, o mercado hipertrofia-se e a mão-de-obra decresce. Além disso, a relação do trabalho com o sistema da ciência-técnica fá-lo inalcançável para uma grande quantidade de subescolarizados. Não pode, portanto, senão aumentar a distância entre as populações que têm acesso ao sistema da ciência-técnica e as do sub-privilégio. Neste cenário, já não se fala em desemprego, mas nos inimpregáveis; nem na exclusão do mundo do trabalho, mas dos inintegráveis.

" justamente nesta relação de forças que o papel da Escola ganha mais relevo do que nunca: se ela foi um importante meio para o adestramento de cada vez mais indiv?duos sem o qual as sociedades capitalistas não teriam vingado, é hoje o instrumento fundamental no combate ao fosso entre os que têm o acesso a posições sócio-económicas dignas de pa?ses desenvolvidos e os que, acumulando défices, vão perdendo velocidade e alimentando o número daqueles a que o discurso pol?tico convencionou chamar os grupos alvo de exclusão social. Só que a Escola que outorgava diplomas e certificava qualificações está hoje em crise. E tem de disputar a sua utilidade a uma série de outras maneiras de estar no social, menos cinzentas, mais imediatas e atraentes. Ela aparece como um lugar carecido de sentido a uma grande quantidade de adolescentes e jovens - e quando atrai, é como lugar de sociabilidades e territorialidades à margem da sala de aula e do projecto de ensino.

A violência não é mais do que o sinal perturbador e inquietante dum confronto entre lógicas juvenis e projecto escolar - venham elas da elite para quem a escola é plebeia, venham de jovens do lado relegado da cidade, para quem a escola é alheia.

Luís Fernandes
Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 101
Ano 10, Abril 2001

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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