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Ou a revisitação de um lugar comum

Como considerava no último número de A Página, o modelo dominante da formação contínua que temos não seria viável, como prática institucional legítima, se não admitisse o pressuposto de que ele contribui para a melhoria global do sistema educativo. Como esse modelo assenta na atribuição individual de competências, deve concluir-se que a qualidade do sistema é um reflexo da qualificação individual dos seus membros.
Como diria J. A. CORREIA estamos em face duma tese que, transformada em lugar comum, assegura a sua própria legitimidade, dispensando todo o questionamento e favorecendo, a partir de si, toda a argumentação necessária, quer à desculpabilização do sistema, quer à responsabilização dos agentes individuais. É neste sentido que se pode afirmar que a tese em causa assume o princípio simplista de que o sistema é o somatório dos indivíduos que o integram.
Sendo verdade que ninguém, hoje, subscreveria esta tese como pertinente, como se explica a sua vigência? Levar-nos-ia longe a pretensão de restituir os processos e mecanismos que presidiram à construção desta evidência. Não podemos, todavia, deixar de adiantar algumas pistas, de cuja exploração é possível ñ assim o admitimos ñ uma melhor compreensão do problema.
A redução dos problemas do sistema escolar a uma visão que os torna homólogos do funcionamento individual dos seus membros é uma velha prática que remonta ao tempo em que o isomorfismo entre o poder e o saber era o fundamento da formação, já que esta era tendencialmente uma forma de assimilação do individual ao universal, ou da conformação do indivíduo ao saber do Estado, dentro do qual se definia o leque de competências profissionais. Com um sistema simplificado, dominado por uma temporalidade linear, de tipo biológico interpretado fisiologicamente e por uma espacialidade sociologicamente estratificada, a previsibilidade dos comportamentos e, portanto, a sua objectivação em perfis desejáveis do ponto de vista da administração do Estado estava em condições de assegurar uma correspondência ideal entre os fins do sistema e o sentido da acção dos indivíduos, neste caso dos professores. Todos pensamos, a este propósito nas figuras arquétipicas de DURKHEIM e BINET, cada um no seu domínio, como os fundadores científicos deste ideal de formação.
A complexificação das relações sociais no exterior do sistema educativo e a projecção dos respectivos efeitos no seu interior que se traduziram, essencialmente, na multiplicação das interacções em prejuízo da lógica da pré-regulação induzida do centro da administração, fenómeno particularmente visível desde os anos 80, aconselhariam um modelo de formação resolutamente apostada na compreensão da complexidade pedagógica e na multireferencialidade dos sistemas de acção e não na simplificação técnico-didáctica, como veio a ser regra e de que ainda não nos livrámos, pese embora algumas correcções casuísticas. Como, porém, tal modelo de formação instauraria formas de trabalho, de colegialidade e de responsabilidade colectiva incompatíveis com a gestão funcional do sistema, o recurso à sobredeterminação do modelo técnico-didáctico-administrativo depressa se impôs como o único susceptível de assegurar a sua funcionalidade, pela simples razão de que, por ser individualmente controlável, promove e justifica a representação de que a qualidade do sistema depende da qualidade individual dos seus membros.

 

Manuel Matos


  
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Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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