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Ramos Rosa ou a construção do corpo e do espaço

Desde longe, mesmo quando se aproximou do neo-realisno e do surrealismo, a 'poética' de António Ramos Rosa cultiva uma certa mitologia da incompletude da palavra na captação do fenómeno poético como uma totalidade cósmica, e que ele mesmo defendera em ensaios de abordagem crítica à linguagem poética. Por sua vez, Eduardo Lourenço pôde observar que a poesia do autor de O Grito Claro denuncia essa pessoal construção do corpo e do espaço, porque 'o real mesmo que Ramos Rosa fitou até não poder distinguir a visão e o visto' o levou à afirmação superior de uma poesia inconfundível na moderna literatura.
Poeta do silêncio e da solidão, cuja originalidade reside, na opinião de Jorge de Sena, 'no equilíbrio entre uma sempre a ultrapassar-se amargura adolescente e uma firmeza de tom que se oculta num estilo aparentemente entrecortado e difuso', mas que até hoje nunca pôde 'adiar o coração', Ramos Rosa tem percorrido o seu caminho por entre outros caminhos, na soma de muitos livros, mais de sessenta títulos bem contados, que fazem da sua condição de escritor um dos mais profícuos criadores literários, em que a palavra poética, silenciada ou subversiva, se impõe no seu modo próprio de se dizer poeta e ser um profundo conhecedor de tantos outros poetas, que não deixam de povoar esse pessoal universo e ser motivo de várias leituras nos seus ensaios de incisões oblíquas. Mas, em forma de 'grito claro', que marcou o seu começo poético há quarenta anos, assim poder declarar em 'O Boi da Paciência', que é ainda um dos seus mais emblemáticos poemas:

Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros: Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!

E por aí a aventura poética não conheceu limites, consolidou-se numa teia feita de muitíssimos poemas, e tantos são que não têm conta, é verdade, porque Ramos Rosa não sabe fazer outra coisa que não seja escrever, falar com os próprios deuses e fantasmas, encher de traços e palavras as folhas brancas de papel, não só para construir o próprio espaço físico e espiritual, por entre montes e montes de papéis, desenhos, livros, na aparente desordem da sua mesa de trabalho, mas sobretudo para conformar por outras veredas de sonhos e inquietações esse seu 'programa solar' que tem sido o desafio de todas as horas em mais de quarenta anos de ofício de poeta que 'está vivo e escreve sol'. Ontem e hoje.
Mas deste modo lembrar ainda com Vergílio Ferreira, no prefácio escrito para O Incêndio dos Aspectos (1980), que toda a aventura de António Ramos Rosa, 'o espaço aberto da vida, se concentra na ponta do 'lápis', coincidente com a sua sombra, no deserto da folha em que escreve. E essa breve coincidência, o ápice do lume que o acende, apela a uma convergência de quanto vibra além dos muros. São brancos, os muros, porque são da cor plausível de todas as cores e nenhuma. Só outra cor lhe assoma à urgência de dizer o mundo - o 'verde' que esquece a vocação fácil de anunciar a esperança para ser apenas o que a antecede, a cor da vida na árvore, no silêncio, na sombra, mesmo no sol, ou na folha, ou na mulher. É a cor da totalidade que vive na imaginação do poeta, onde abreo esplendor da perfeição. E todo o mundo existe na existência do poema. É a palavra que o inventa na sua realidade plena à expectativa com que o poeta o atende'.
Porém, na aparência de ser um Quixote de outras utopias, escondido no silêncio da casa e sempre às voltas com os seus fantasmas ou deuses de outras galáxias, nessa propositada construção do corpo e do seu espaço, repetimos, a obra de Ramos Rosa tem-se consolidado na amargura de muitas desilusões, nas doenças que lhe fustigam o corpo, mesmo no cansaço das horas que passam e só lhe deixam tempo para ter consciência de que sempre 'estamos nus e gramamos',mas sobre o rosto da terra e na claridade vesperal de ser ainda possível, pelos caminhos da memória, ressuscitar as sombras e os lugares que moram longe, ou redescobrir outras regras que consintam ser transitivo dentro da própria ordem ou desordem e 'na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo'.
Mas, na certeza de que os mecanismos interiores se não desafinam e outros sons e palavras enfeitam esse mundo fechado em que o poeta sempre vive, na sua cadeira móvel, na permanente ocupação do espaço que é o seu por direito a sê-lo, sim, porque dessesono calmo ou desvairado em que vive emerge

branco surto da sombra em movimento,
à procura de si, de um ombro
em que pouse, contorne
e demorando-se
se propague e desvaneça na brancura.

Sabemos que esse caminho não tem sido um mar de rosas, o poeta sabe do que fala e do que canta, do que lamenta e de si mesmo se lamenta, longos e demorados têm sido os anos de silêncios e angústias, no temor e tremor da morte e na ânsia de louvar a vida, como profundo sentimento do mundo que se entrelaça nas mil teias de um percurso sinuoso, vibrátil, solar ou nocturno, em forma de melancolia que não pede licença para se impor e ser a exacta medida dos seus conflitos ou desamores. E ainda cantar:

Não é a terra que dança nem o homem
mas a força clara lavrando
o nome branco, sulco a sulco,
livre afirmação exacta
de um corpo que descobre
e se propaga.

Mesmo quando evoca outras sombras e lugares, como neste último livro claramente intitulado Nomes de Ninguém, por onde perpassam nomes e presenças de quem habita a 'casa' do poeta em horas de sonho ou de vivo recolhimento interior, como no belo poema 'Agrípia' que é o pórtico mais entendível de todo o livro:

Esta casa não seria a mina casa
se não fosse a tua branca arquitectura
e o teu hálito límpido que me guarda
nas suas tranquilas coordenadas.
Por ti o horizonte está em casa
e nele eu vi contigo a ondulada
permanência da alma iluminada.

Assim, a par e passo, a arte poética de Ramos Rosa se confunde com a sua própria existência real, por entre dificuldades e difíceis formas de sobrevivência, mas sempre no propósito de acima de tudo, nessa liberdade livre que foi a sua pessoal opção, saber que a poesia o visita a todas as horas e, pelos diferentes clamores, a vida afinal se impõe para ser vivida nos altos e baixos por si mais conhecidos e sentidos. E ainda na coragem de ter recusado um prémio literário com que, em tempos marcelistas, o celebrado SNI (Secretariado Nacional de Propaganda) quis de algum modo chamá-lo para o seu lado, conhecendo as verdadeiras dificuldades em que então vivia, mas sem contar com a coragem e dignidade de quem sempre se afirmara como poeta na mais profunda acepção da palavra. Ontem e hoje, sim. E, quando em 1988 recebeu o 'Prémio Pessoa', atribuído pela publicação do seu Livro da Ignorância, Ramos Rosa conheceu, finalmente, a consagração pública a que tinha direito, não só pelo modo pessoalíssimo de estar na vida, mas porque ao longo de tantos anos de ofício de poeta acima de tudo soube honrar e dignificar a Poesia.

Serafim Ferreira

António Ramos Rosa
NOMES DE NINGUÉM
Editorial Escritor

 


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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