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Fome de aulas em Setembro

Editorial. Julho. 1994

O editorial de Julho é para mim o mais complicado. Fico indeciso entre o balanço do ano lectivo que agora terminou e em pensar o ano lectivo que vem aí. Tudo isto num tempo em que o maior desejo não pode deixar de ser uns dias de férias.

Quando se escreve escreve-se para alguém. No meu caso, e neste jornal, escrevo principalmente para os professores. E também isto complica a escrita de Julho. Sinto-os, tal como eu, mais preocupados com um pequeno tempo de descanso do que com o que passou ou vem aí. E no entanto, a experiência de anos anteriores, faz-me pensar que muitos aproveitam este tempo de descanso lendo também 'a Página'. Resta pois a obrigação de escrever.

Nestes dias, em que as equipas de futebol já regressam de férias, é comum lermos declarações de jogadores afirmando sentirem 'fome de bola'. Se as declarações são verdadeiras, e não se destinam apenas a criar imagem junto dos adeptos, isto mostra que pelo menos alguns jogadores com apenas um mês de descanso se sentem mortos por voltar à actividade.

Eu próprio também me lembro de nalguns meses de Setembro sentir uma certa excitação com a perspectiva de voltar à escola. Penso que nesses anos sentia 'fome de aulas'. Isso acontecia num tempo em que no início de Setembro se vivia uma saudável animação, sentiamo-nos bem naquele regresso à escola. Era como voltar a qualquer coisa que por nos pertencer e por lhe pertencermos nos fazia falta.

Confesso. Nestes últimos anos, no início de Setembro, não sinto 'fome de aulas', mas de um pouco mais de férias. Se este fenómeno fosse puramente individual concluiria que o que eu preciso é de mudar de emprego. Mas sinto que este fenómeno alastra entre os meus colegas de ofício. São cada vez mais numerosos os professores que em Setembro já não têm 'fome de aulas'.

Eu continuo convencido que um jogador de futebol que regressa de férias sem 'fome de bola' tem todas as probabilidades de fazer uma má época. O mesmo se passa com os professores sem 'fome de aulas'. Como todos queremos fazer boas épocas parece-me que valeria a pena tentar entender o que tira o apetite pelas aulas aos professores de tal modo que passam a época com uma grande fome de férias.

Dirão alguns que o problema é da idade. Vamos ficando velhos e com menos paciência. Aceitando que o fenómeno tenha algum peso não creio que esta seja a questão determinante. Lembro-me de muitos colegas, já próximos da reforma, regressarem em Setembro tão'famintos de aulas' como eu. Decididamente deve haver outras explicações.

Podia pensar-se que a fala de apetite pelas aulas se deve à instabilidade nas colocações. Não creio. Foi a 'fome de aulas' que me permitiu suportar essa instabilidade uma dúzia de anos. O mesmo aconteceu à maior parte dos professores portugueses. Sem 'fome de aulas', com o salário que nos pagavam a pagam como teria sido possível suportar tal situação?

Uma justificação para a nossa falta de apetite pelas aulas podia residir no baixo índice salarial. Em parte penso que sim. Honestamente penso que se ganhasse o dobro do que ganho (o que seria ainda pouco em termos europeus) é muito provável que eu em Setembro sentisse um tudo nada mais de apetite pelas aulas. Assim, dividido entre ir à praia poluída da Madalena ou de Valadares não dá para criar apetite pelas aulas. Só dá para sentir uma grande fúria quando oiço Cavaco Silva discursar. Perco todo e qualquer apetite.

Outra explicação para a nossa falta de apetite pelas aulas pode estar no modo de estar e de organizar as escolas. A questão central pode estar mesmo aqui. Eu sentia 'fome de aulas' nos meses de Setembro quando me sentia parte da escola, quando a escola fazia parte da minha vida. Não é o que se passa hoje.

A escola, nos últimos anos, transformou-se numa repartição pública. Ainda por cima numa repartição pública portuguesa. Os professores vão-se deixando transformar em terceiros-oficiais. Obedecem a regulamentos, despachos, ofícios, circulares, directivas. Obedecem a tudo, menos ao rigor intelectual e crítico que é a condição de ser professor. Não se indignam, não propõem, sujeitam-se.

No interior das nossas escolas pululam os candidatos a 'gestores' do sistema. Um vasto leque de imbecis e incompetentes que confundem a gestão da escola com o domínio e aplicação das regras e regulamentos vindos do Ministério da Educação. Uma situação a todos os títulos lamentável. Os mais capazes afastam-se porque não querem sujar as mãos.

No Ministério da Educação, para quem entenda alguma coisa de educação e ensino, a situação é de caos completo. A Srª Ministra, para além de economista, é apenas dona de casa. Em educação e ensino é analfabeta literal e funcional. Quanto aos jovens Secretários de Estado nem com um curso de educação complementar acrescido de explicações particulares lá vão. São apenas e só jovens militantes do partido do governo sem emprego. O país, os professores e os jovens portugueses mereciam melhor sorte. Quanto aos Directores Gerais, como é sabido, os tecnicamente mais capazes e responsáveis tiveram o cuidado de se ir embora. Também aqui ficaram os que na vida, acima de tudo, querem um emprego melhor remunerado.

Admiram-se que em Setembro eu e muitos professores não tenhamos 'fome de aulas'? Em matéria de Educação e Ensino, por tudo o que aconteceu nos últimos anos, quem confia no treinador Cavaco Silva? Espero que na época de 94/95 haja 'chicotada psicológica'. Para ver se nos vem a 'fome de aulas'.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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